GESTÃO: INSTITUTO TROPICAL

NA VOZ DA CRÍTICA

 

 

PERFIL DE VIEIRA
NO PROCESSO DA INQUISIÇÃO

Quem é, o que pensa e o que fez? Quais suas credenciais?

Ponderação 8ª: acerca do réu


In Defesa do Livro Intitulado
“Quinto Império” pelo P. Antônio Vieira.


      1. Esta última ponderação fora melhor fazê-la outrem do que eu, pois sou forçado nela a falar por mim e de mim, mas o fazê-lo forçado será desculpa das ignorâncias que disser, que assim chamou S. Paulo a tudo o que disse; sendo tão verdadeiro, quando obrigado a falar de si, se valeu da mesma desculpa, dizendo:
                    — Factus sum insipiens, vos me coegistis.
                    Ego enim a vobis debui commendari;
                    nihil enim minus fui ab iis qui sunt supra modum Apostoli:
                    tametsi nihil sum. Quasi insipiens loquar: vos me coegistis.

                    “Tornei-me um insensato. Vós me obrigastes.
                    Eu deveria ser defendido por vós, pois, embora nada seja,
                    em nada sou inferior aos melhores apóstolos.Falarei com insensato.
                    Vós me obrigastes
." (II Cor. XII, 11)

     2. De duas coisas me vi principalmente arguir nos exames:
     A primeira é de suspeito na Fé, a segunda de presumido no engenho. E começando por esta segunda arguição — que quero saber mais que os padres e doutores antigos:
     Já disse que acerca da zona tórrida e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao Mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles nem S.t° Agostinho, pela diferença dos tempos; e sendo os tempos, como confessam os mesmos padres, o melhor intérprete das profecias, bem pode acontecer sem maravilha e cuidar-se sem presunção, que um homem muito menos sábio possa atender, depois do discurso de largos anos e sucessos, algumas profecias que os antigos, sapientíssimos e santíssimos, por falta de notícia não declararam nem alcançaram.

     Assim cuidam de si Boécio, Genebrardo, Leão de Castro, Palácio, Árias Montano, Malvenda, Pôncio Sherlogo, Mendonça e outros muitos, os quais expõem muitas escrituras proféticas, sucedidas nestes últimos séculos, confessando que os padres antigos não puderam pela dita causa conhecer o sentido literal delas.

     Assim que, quando fizera eu o mesmo, fora um daqueles que nem por isso são notados de presumidos; mas não é este o meu caso, porque, ainda que me atrevi a navegar por um mar tão profundo e por meio de uma cerração tão escura como a das escrituras proféticas, fui seguindo o farol de tanto número de santos e doutores antigos e modernos, quantos no princípio ficam enumerados, dizendo o que eles primeiro disseram e querendo só reduzir a um discurso e volume o que eles escreveram dividido em muitos lugares.
      Confesso, contudo, que se me pode replicar que, ainda em seguimento de outros autores, não era esta empresa para um homem tão idiota como eu agora tenho acabado de conhecer que o sou; mas esta culpa tiveram em parte meus prelados, os quais de idade de dezessete anos me encomendaram as ânuas da Província, que vão a Roma historiadas na língua latina, e de idade de dezoito anos me fizeram mestre de primeira, aonde ditei, comentadas, as tragédias de Sêneca, de que até então não havia comento; e nos dois anos seguintes comecei um comentário literal e moral sobre Josué e outro sobre os Cantares de Salomão em cinco sentidos; e indo estudar Filosofia de idade de vinte anos, no mesmo tempo compus uma filosofia própria; e passando à Teologia, me consentiram os meus prelados que não tomasse apostila, e que eu compusesse por mim as matérias, como com efeito compus, que estão na mesma Província, onde de idade de trinta anos fui eleito mestre de Teologia, o que não prossegui por ser mandado a este Reino na ocasião da restauração dele.

     3. Em Portugal continuei os mesmos estudos, com a aplicação que todos sabem, sendo mais morador da livraria que do cubículo, não prejudicando em nada aos ditos estudos as peregrinações de Holanda, França, Inglaterra e Itália, onde fui enviado por S. M., porque, sobre a notícia que tinha muito universal dos livros, sendo sempre bibliotecário em todos os colégios, pude ver as melhores livrarias do Mundo e tratar os homens mais doutos, consultados e consumados em estudos particulares, e estudar todo o gênero de controvérsia, nem só na paz, senão com as armas na mão, ajudando-me não pouco o mesmo conhecimento das terras e mares, para a exata cosmografia e inteligência da história profana, eclesiástica e sagrada, para a qual também me apliquei muito à cronologia dos tempos, ordem e sucessão das idades do Mundo, da Igreja e dos homens grandes que nele e nela floresciam, querendo conhecer os ditos homens pelas suas obras e lendo-as para isso nas suas fontes, principalmente as dos Santos Padres e expositores da Escritura, a qual passei por vezes toda, e mais particularmente.

     Os livros proféticos, insistindo sempre no sentido genuíno e radical pretendido pelo Espírito Santo, sem me divertir nas folhas e nas flores (que é o estudo ordinário dos Portugueses), e procurando sobretudo a coerência de uns lugares com outros, de modo que todos se pudessem entender concordemente, sem contradição ou repugnância alguma em todo o Texto Sagrado.

        Estas são as diligências que fiz em toda a minha larga vida, sendo por mar e por terra meus companheiros inseparáveis os livros, e estas são também as partes que eu lia e ouvia dizer se devia compor o bom intérprete das Escrituras Sagradas, de onde resultaram as razões e aparências por que eu com culpa, e outros com não pouca temeridade, se enga-naram comigo, entendendo que na mesma insuficiência havia capacidade para uma obra que tanto excedia a limitação do meu cabedal e talento.

     4. Quanto às suposições de Fé, depois de dar infinitas graças a Deus por me chegar a estado em que era necessário dar razão de mim em tal matéria, peço aos Snrs. Inquisidores sejam servidos, primeiro que tudo, de se informarem dos procedimentos deste indigno religioso, principalmente no tempo em que escreveu o papel de que se tomam estes fundamentos, para que julguem ao menos se o teor da sua vida e o seu zelo da disciplina religiosa e do culto divino, da propagação da Fé e da salvação das almas, da reformação dos costumes, da frequência dos sacramentos, da promoção da piedade e devoção, assim entre os Portugueses como entre os índios e outros, eram ou podiam ser de homem que não amasse a Cristo, nem cresse na sua Fé.

     5. E se, outrossim, eram ou podiam ser de homem que não amasse a Cristo os assuntos de seus sermões e matéria e eficácia deles, e as doutrinas de todos os domingos, uma que fazia na Matriz aos índios na sua língua, e outra aos estudantes em português no seu Colégio, a que concorria todo o povo, e as confissões gerais e mudanças de vida que resultavam das ditas doutrinas e pregações, e dos livros espirituais, principalmente da diferença entre o temporal e eterno, de que levei muitos a este fim, que repartia e fazia repartir aos que eram capazes daquela lição;
     E se era de homem que não amasse a Cristo nem cresse na sua Fé o contínuo socorro de todos os pobres, que são neste Mundo os substitutos do mesmo Cristo, aos quais chegou a dar-lhes a sua própria cama, dormindo daí por diante em uma esteira de tábua, sem jamais se negar a pobre coisa alguma que houvesse em casa onde ele se achasse, tendo dado a mesma ordem a todas as outras.
     E porque naquelas terras não havia botica, a mandava ir todos os anos deste Reino a grandes despesas suas, para a fazer comum de todos os enfermos, assim pobres como ricos, procurando e ajudando a que se fizesse um hospital para os soldados que morriam ao desamparo, solicitando as causas dos presos e intercedendo por eles, e livrando muitos e mandando à cadeia muito frequentes esmolas, e informando-se dos párocos e dos confessores das necessidades que havia ocultas, as quais remediava também ocultamente, e com maiores socorros do que se podia esperar de quem professava pobreza.

     6. Ou se era de homem que nem cresse nem amasse a Cristo, o cuidado e a vigilância, e as viagens e indústria que tinha, para que nenhum gentio ou catecúmeno morresse sem batismo nem algum batizado sem confissão, indo muitas vezes quatro e seis léguas a pé, e muitas vezes quinze e vinte, atravessando bosques e rios, sem ponte nem caminho, caminhando de dia e de noite para confessar a um enfermo.
     E posto que nem as suas forças nem as suas virtudes eram para outros maiores trabalhos, ao menos fazia que os empreendessem seus companheiros, indo alguns deles distância de cinquenta léguas e sessenta, a acudir a um moribundo, só na dúvida de se poder achar ainda vivo, posto que se afirmasse estaria já o índio morto, como verdadeiramente se achava.
     E porque as distâncias e as necessidades eram muitas e os sacerdotes poucos, compus um formulário breve, com todos os atos com que, em falta do sacramento da penitência, se pode uma alma pôr em graça de Deus, escrito pelas palavras mais substanciais e breves e de maior eficácia, assim na língua portuguesa, como na geral dos índios, para que qualquer pessoa, nos casos de necessidade, pudesse suprir a ausência dos sacerdotes. E outra segunda parte na mesma forma, para poderem administrar o sacramento do batismo e dispor para ele, nos casos e termos mais apertados, a qualquer gentio; e outras semelhantes indústrias e prevenções, para que nenhuma alma se perdesse.

     7. E será, finalmente, de homem que não cresse em Cristo nem amasse a Cristo, a constância, a que outros chamam pertinácia, com que tanto instou e trabalhou para arrancar por todas as vias daquele Estado o pecado universal, e como original dele, do cativeiro injusto dos Índios, sem embargo de ter contra si todos, não só seculares, senão eclesiásticos?
     Tornou a Portugal sobre esta demanda, e embarcando-se para isso em um tal navio, que no meio do mar se virou onde tivera acabado os seus trabalhos, se Deus para outras maiores o não livrara quase milagrosamente?

     8. E posto que o Demônio nesta empresa parece que prevaleceu, não deixou contudo o bom zelo de alcançar contra ele na mesma batalha muitas importantes vitórias, sendo o primeiro rendido o vigário da Matriz da cidade do Grão-Pará, cônego da sé de Elvas, o qual deu liberdade, por uma escritura pública, a mais de setenta escravos, com grande escândalo de suas ovelhas, granjeando com esta obra o indigno instrumento dela o ódio de todos os homens, mas ganhando aquela e outras almas para Cristo, por quem e pelas quais, em tantos conflitos por mar e por terra, expôs tantas vezes a vida às setas dos Bárbaros e à fúria dos elementos, sem bastarem estas demonstrações, não sendo feitas no seu cubículo, senão na face do Mundo, para o não arguirem de inimigo de Cristo.
     Não cuidavam assim os que lhe ouviam as práticas dos passos da Paixão de Cristo, que ele introduziu na igreja de S. Luís do Maranhão, repartidos por todas as sextas-feiras da Quaresma, sem que nenhuma houvesse em que não fosse necessário acudir com remédios a muitos dos ouvintes, uns porque desmaiavam, outros porque abafavam de dor e de lágrimas;
     Mas ainda era maior o fruto, e muito conhecido, de uma história ou exemplo de Nossa Senhora, que também introduziu e pregava todos os sábados bem de tarde, a que concorria com grande devoção e expectação toda a cidade, introduzindo assim mesmo na dita igreja todos os dias o terço do rosário, de que ele era capelão; e não só vinham rezar os estudantes e meninos da escola, por obrigação e para bem se costumarem; mas também se achava ordinariamente à mesma devoção o Governador, Ouvidor-Geral, Provedor-Mor da Fazenda, Sargento-Mor, o Vigário-Geral da Matriz, e outras pessoas principais, sendo muitas as famílias que no mesmo tempo faziam o mesmo em suas casas, rezando pais, filhos e escravos em um coro, e as suas mães, filhas e escravas, em outro, seguindo em tudo a forma a que eram exortados.

     9. Isto é o que obrava o réu em a mesma terra e no mesmo tempo em que foi escrito o papel de que se inferem as consequências por que é chamado ímpio e blasfemo. Mas supostas as cousas referidas outras mais interiores (que se calam e passaram no Maranhão), em Coimbra estão os padres Francisco da Veiga, Jácome de Carvalho e José Soares, que podem testemunhar neste caso, e estão em Portugal também o Dr. Pedro de Melo, Baltasar de Sousa Pereira e o Dr. Jerónimo Cabral de Barros, governador e Capitão-Mor e sindicantes que foram, naquele tempo e Estado, meus capitais inimigos (e Deus e o Mundo sabem o porquê) os quais sem embargo disso ofereço por testemunhas do mesmo, ao licenciado Domingos Vaz Correia, Vigário-Geral que foi muitos anos e o era naquele tempo do Maranhão; e os mestres pilotos e marinheiros que de lá me trouxeram duas vezes, os quais dirão como as primeiras rações da minha mesa ou do meu refeitório eram de todos os passageiros pobres, que em duas vezes que me tenho embarcado, tomei sempre à minha conta.
     E, como, sendo roubados e lançados na ilha Graciosa em número de quarenta uma pessoas, eu me empenhei para remediar a todos, dando a quatro religiosos do Carmo que ali vinham, hábitos e toda a roupa interior, e a todos os mais camisas, sapatos e meias, e a outras pessoas vestidos que lhes eram necessários;
     E com escolher de entre os marinheiros um homem de respeito e outro dos passageiros, lhes entregava sem limitação o dinheiro necessário para sustento de todos, em todo o tempo, que foram dois meses que nos detivemos na dita ilha e na Terceira, aonde dei a todos embarcação e matalotagem de biscoito e carne e pescado para quarenta dias, por serem os ventos contrários, com que passaram ao Reino.
     E assim os ditos marinheiros e passageiros desta viagem, de que era mestre Francisco Serejo, vizinho de Lisboa, como os da última, de que era mestre Fulano Pontilha, vizinho de Aveiro, dirão também como nos ditos navios pregava todos os domingos e dias santos; e quando o mar e o tempo dava lugar, dizia missa e havia muitas confissões e comunhões, e varias doutrinas entre a semana, e lição da vida de santos; e todos os dias pela manhã o terço do rosário, e à tarde a ladainha de Nossa Senhora, a que ninguém faltava, e depois dela meditação para muitos que se achavam a ouvi-la, e à noite exame de consciência para todos, tudo com grande silêncio, ordem e campa tangida, como se fora convento ou noviciado de religião.

     10. E o mesmo se observava em qualquer canoa de missão, sendo as primeiras peças da matalotagem o altar portátil e o relógio de areia, e a campainha para os exercícios espirituais, conforme as regras e estatutos que fiz por ordem do Padre Geral, quando me mandou os seus poderes para que desse forma à missão, dispondo e ordenando tudo o que nela se havia de guardar, assim quanto à observância religiosa dos missionários, corno no pertencente à conversão e doutrina dos índios, as quais regras, deduzidas em mais de 180 capítulos, foram todas aprovadas em Roma, sem se acrescentar nem diminuir palavra, e delas há em Portugal algumas cópias, de que se poderão ver os errados ditames do meu espírito e zelo da Religião.

     11. Mas vindo ao particular da Fé: de idade de dezessete anos fiz voto de gastar toda a vida na conversão dos Gentios e doutrinar aos novamente convertidos, e para isso me apliquei às duas línguas do Brasil e Angola, de que usam os gentios e cristãos boçais daquela província.
     E porque para este ministério me não era necessário mais ciência que a doutrina cristã, pedi aos Superiores me tirassem dos estudos, porque não queria curso nem Teologia, e cedia dos graus da Religião que a ele e ela se seguem.

     12. E posto que os Superiores mo não quiseram conceder, antes me tiraram a obrigação do voto, e o Padre Geral fez o mesmo, eu contudo o tornei a renovar e insistir nele, até que ultimamente o consegui, indo-me para o Maranhão tanto contra a vontade de El-rei e do Príncipe, como é notório, levando e convocando de diversas partes da Companhia para a mesma missão mais de trinta religiosos de grandes talentos, com os quais trabalhei por espaço de nove anos, navegando neste tempo água doce e salgada, mais de mil e quatrocentas léguas, fora muitas terras e desertos sempre a pé.
     Favoreceu Deus tanto o fervor daqueles operários, que já a missão e a Fé estava estendida em o distrito de seiscentas léguas, que tantas contei eu e andei desde a serra de Ibiapaba até o rio dos Tapajós, sendo catorze as residências em que assistiam religiosos, acudindo de aí a diversas partes, e havendo algumas em que só os batizados que morreram inocentes em espaço de quatro anos passaram de seiscentos, além de muitos adultos batizados in extremis, para os quais e para outros que mais de vagar se iam catequizando compus no mesmo tempo, com excessiva diligência e trabalho, seis catecismos que continham em suma todos os mistérios da Fé e a doutrina cristã em seis línguas diferentes: um na língua geral da costa do mar, outro na dos Nheengaibas, outro na dos Bocas, outro na dos Jurimanas e dois na dos Tapuias.

     13. Tendo-se levantado e edificado de novo todas as igrejas das sobreditas residências e outras muitas, servidas e ordenadas todas pela indústria de quem escreve este papel, porque a todas dava vinho e hóstias para as missas e cera branca para os dias principais, sendo levadas todas estas coisas deste Reino de Portugal, porque naquelas terras as não há;
     Como também iam de Portugal todos os ornamentos, uns ricos e outros decentes, e os sacrários e os altares portáteis, os cálices e as custódias maiores e menores, aquelas de grande majestade, cruzes, castiçais, lâmpadas, turíbulos, alguns de prata e os mais de latão, muitos sinos, muitas imagens de Cristo e de Nossa Senhora e de vários santos, umas de pintura para os retábulos e outras de relevo estofadas, assim maiores para os altares, como menores para as procissões; e até máscaras e cascavéis para as danças das mesmas procissões, para mostrar aos Gentios, muito inclinados aos seus bailes, que a Lei dos Cristãos não é triste.

     14. E assim mesmo todo o aparato dos batismos para se fazerem com grande pompa, necessária igualmente aos olhos da gente rude, que só se governa pelos sentidos; muitas resmas de papel, tintas e latas para os sepulcros, e imagens da Paixão para as procissões da Quaresma e Semana Santa, que tudo se introduziu desde logo para ficar mais bem fundado e estabelecido entre aqueles novos cristãos, sendo matéria de grande devoção ver derramar sangue por amor de Cristo e vestidos de disciplinantes à portuguesa, muitos daqueles mesmos que poucos meses antes se fartavam de sangue e carne humana;

     15. Sendo raro o que naqueles dias não fizesse esta penitência, e para verem da mesma maneira com os olhos o mistério do nascimento de Cristo, cuja solenidade fazia celebrar com diálogos na sua língua, representados por seus próprios filhos.
     Mandava também ir de Portugal as imagens do presépio e outras curiosidades daquela festa, de que se paga ainda a gente de maior entendimento; vários ternos de chamarelas e flautas para maior solenidade das missas, as quais já alguns dos índios tinham aprendido a cantar em música de órgão, e ajuntando-se a estas despesas mais chegadas ao culto divino, outras ordenadas ao mesmo fim, que são as que lá chamam resgates, com que se conciliam os ânimos dos Bárbaros, e vem a ser grande quantidade de machadas, foices de roçar, facas, tesouras, espelhos, pentes, agulhas, anzóis, e de tudo isto milheiros levados com o demais de Portugal, muito pano de algodão para cobrir, ao menos decentemente, as mulheres convertidas, e outros vestidos de panos de cores alegres para os maiores e régulos das nações.
     Nas quais coisas todas, em duas vezes que fui ao Maranhão, em nove anos que lá estive, despendi com aquela nova cristandade mais de cinquenta mil cruzados, pela valia da terra, sendo muito maior o cuidado e desvelo que o valor, para que se julgue se foi demasiado empenho com Cristo e a sua Fé, para quem se diz que espera outro Messias.

     16. E porque não pareça muito a quantidade ou quantia da despesa, esta se tirava de quatrocentos mil réis que o Senhor Rei D. João me deu para este fim, situados nos dízimos do Brasil, donde vinham em açúcares, livres de direitos, e do meu ordenado de pregador de El-rei e das esmolas de meus parentes, que só para isso lhas aceitava, e de empenhos e dívidas que fazia, de que ficava por fiador o Padre procurador do Brasil, e principalmente da grande e contínua liberalidade com que El-rei em sua vida, e a Rainha por sua morte, assistiam àquela missão, não só por via da Junta da Propagação da Fé, senão por mercês e donativos particulares.

     17. Mas o que muito se deve notar é que a aplicação das coisas sobreditas, toda era e vinha a ser à custa da caridade e mortificação dos missionários, os quais, comendo farinha-de-pau, bebendo água e vestindo algodão tinto na lama, tiravam de si da boca o que tinham por mais bem empregado no culto divino e no socorro dos pobres corpos das almas que iam salvar, sendo o maior trabalho e dificuldade de toda a missão a cobiça insaciável dos que, por cativar e vender os corpos punham em risco as almas; e, para o fazerem mais livremente e sem estorvo, chegaram a prender sacrilegamente e desterrar aos que por amor das mesmas almas se tinham desterrado.
     Mas agora sobre a impunidade que logram estarão muito satisfeitos desta sua ação, pois não consentiram que na sua terra pregasse a Fé um homem a quem o Santo Ofício prendeu por crime contra ela, e tem por suspeito na Fé.

     18. Indo para o Maranhão, quis Deus que por uma tempestade arribasse o navio às ilhas de Cabo Verde; e conhecendo o desamparo espiritual delas e de toda a costa de Guiné e Angola, escrevi de aí apertadissimamente a S. M., metendo grande escrúpulo ao Príncipe (que já ficava enfermo) para que se acudisse àqueles gentios e desamparados dos Cristãos, de que resultaram as duas missões que ainda hoje se continuam com grande fruto, uma dos religiosos da Piedade em Cabo Verde, outra de carmelitas descalços em Angola.

     E tornando depois a este Reino a procurar o remédio (que depois foi causa da minha expulsão) com que se evitassem os cativeiros injustos e se tirasse de uma vez no Maranhão este estorvo da conversão das almas, com o bem delas procurei juntamente o universal de todos os gentios, alcançando de S. M. se informasse a Junta da Propagação da Fé, de que sou deputado, e pondo em prática com alguns senhores a congregação do mesmo fim, que pouco depois se instituiu em S. Roque, debaixo da proteção de S. Fran-cisco Xavier.

     19. Tornando em menos de um ano outra vez ao Maranhão, sobre novas instâncias de S. M., mas com novas leis sobre a conversão e liberdade dos índios, bastou só a fama das ditas novas leis, certificadas só com a firma de quem as veio procurar, para que muitos índios dos mais bravos e belicosos se mandassem logo sujeitar à direção dos missionários, e por meio deles à obediência da Fé e de S. M., havendo mais de vinte anos que, por agravos recebidos, faziam cruel guerra aos Portugueses; e SE a cobiça dos que tinham maior obrigação de guardar as ditas leis não fizera tão pouco caso delas, como das de Deus e da natureza, fora sem dúvida hoje aquela cristandade das mais florescentes e copiosas que teve a Igreja.

     20. Contudo, enquanto com a vida de El-rei se não perdeu o respeito às suas ordens, houve lugar de se fazerem onze missões pelo sertão dentro, até a distância de mais de seiscentas léguas, sendo um dos missionários delas, que tinha obrigação de dar exemplo aos mais, este suspeito na Fé.

     Nas quais missões não faltavam trabalhos e perigos, em que alguns dos missionários deram a vida e trouxeram para o grêmio da Igreja muitos milhares de almas de diversas nações — Potiguares, Tupinambás, Catingás, Pacaiás, Poquis, Mainauás e Anaiás — e se começava a introduzir a Fé e receber nos Tucujus e Aroaquis, que são dois grandíssimos reinos ou províncias, por onde também se abria o passo a outros muitos, sendo sempre maior dificuldade e trabalho vencer a contradição dos Portugueses que a fereza dos Bárbaros e Gentios, isto é, quanto à fé destes, de que pudera fazer muito largas relações.

     21. Quanto aos hereges, no tempo em que vivi e passei por suas terras me apliquei com toda a diligência ao estudo de suas controvérsias, tendo com eles batalhas quotidianas e públicas, por ser esta a sobremesa daqueles países, principalmente à noite, assistindo-me Deus com fortíssimos argumentos e evidentes soluções, que por não acrescentar suspeita de presumido não digo que se não acham nos livros, e sempre pela graça divina com vitória da Fé e honra da Igreja Romana.

     E quando estive na mesma Roma, aonde tive também disputas e convenci a um ateu que entre eles era douto, dispus um memorial para se apresentar à Santidade de Inocêncio X sobre a conversão dos hereges do Norte, pelas notícias que eu tinha alcançado do que mais dificultava a sua conversão ou redução, o que se impediu com a repentina brevidade com que o Padre Geral, a instância de El-rei de Castela, por seu embaixador o duque do Infantado, me mandou sair da Cúria.

     Apliquei-me à apreensão de quatro índios canarins levados por desastre a Inglaterra desde a índia, os quais tirei de entre aquela gente com dádivas, e os trouxe com muita despesa a Portugal para que se não fizessem hereges, como já se tinha feito outro seu companheiro e um grumete português natural do Porto, moço de quinze anos,
do qual tive notícia ia ferido de peste em um navio velho da mesma frota de Holanda em que vim embarcado, e me passei ao dito navio, e assisti nele por mais de vinte dias, em que padeci três terríveis tempestades, até que morreu confessado nas minhas mãos, para que os hereges o não pervertessem.

     22. Quanto ao Judaísmo, não só procurei em Holanda e França reduzir a cegueira dos Judeus em algumas conversações particulares (que pela ignorância deles não merecem o nome de disputas), mas diante de alguns, em Amsterdã, convenci ao seu mestre português, Manassés, e apelando para outro italiano, Morteza, também lhe pedi que mo trouxesse e que escolhesse o dia e lugar em que quisessem disputássemos, o que eles não fizeram, pelo tal Mortera não querer. Mas agora poderá ser que cuidem que me pareceram bem os argumentos do seu Manassés.
     Em ordem à conversão dos Judeus, admirado de ver que os padres da Companhia ingleses escrevem contra as heresias da sua Inglaterra, e os alemães contra as de Alemanha, os franceses contra as de França, e que os portugueses não escrevem contra o Judaísmo (que é a heresia de Portugal), determinei escrever contra eles o livro de que dei conta nesta Mesa; mas porque me disseram em Lisboa pessoas inteligentes que o Santo Ofício o não havia de deixar imprimir, desisti desta obra e converti o zelo que Deus nela me tinha dado em a conversão dos Gentios, despedindo-me totalmente da dos Judeus e dizendo com S. Paulo e S. Barnabé:

                    — Ecce convertimur ad gentes.
                    [Nós, nos voltaremos para os gentios] (At, XIII,46)

     23. Até dos Turcos (que só restavam entre os inimigos da Fé) me não esqueci, querendo ao menos tirar de entre eles aos renegados e aos que estavam em perigo de o ser, dando a El-rei D. João, que Deus tem, os meios com que isto se podia conseguir, com pouco dispêndio da fazenda e grande utilidade da navegação, pois o Reino está tão falto de marinhagem, que geralmente é a gente de que há mais cativos em Barberia.
     E posto que o alvitre e meios foram muito aprovados de S. M., que lhes chamou inspirados pelo Espírito Santo, impediu-se a execução por outros acidentes e porque com a minha ausência não houve quem o intentasse ou instasse. Assim que estes e outros semelhantes desserviços são os que tem feito e procurado fazer à Fé de Cristo este, outra vez, indigno religioso, que sobre este nome merece o de ímpio, de sacrílego, blasfemo e outros mais feios e de maior horror.

     24. Agora me lembra que não só no Maranhão, mas na ilha Terceira, S. Miguel e Graciosa, e em todos os navios em que naveguei, introduzi o rezar o terço do rosário publicamente a coros, aonde se tem pegado esta devoção e quase todos os navios mercantes e das armadas, por indústria daqueles mesmos marinheiros, como eles mesmos mo disseram, que é novo argumento do ódio que tenho a Cristo e aos mistérios da sua vida, paixão e glória, e também a sua santíssima Mãe, minha única Advogada e Senhora nossa.
      Contra tudo isto se me opõe o dizerem que sou favorecedor dos Judeus, e se me prova com os dois papéis que antigamente fiz, e com ir a Roma e Holanda e procurar-lhes sinagogas e serem admitidos neste Reino, o que tudo é sem fundamento, e uma mera fábula do vulgo, a quem eu não havia de dar satisfação, escrevendo pelas esquinas de Lisboa os negócios a que era enviado por El-rei.

     25. Quais fossem os negócios de Roma, pode dizer o Snr. Arcebispo eleito de Lisboa, a quem se deram as mesmas instruções, quando no mesmo tempo esteve nomeado embaixador extraordinário de França; e quais fossem os mesmos de Roma e Holanda, e todos os mais, dirá o Secretário de Estado, Pedro Vieira da Silva, por cuja mão corriam todos.

     Mas porque se poderá imaginar que este fingido negócio dos Judeus fosse ainda mais secreto, o Dr. Pedro Fernandes Monteiro pode dar notícia da verdade de tudo, porque ele era o secretário de uma cifra particular que eu tinha com S. M. para algum segredo secretíssimo, se acaso o houvesse.
     A verdade lisa é que, acerca de Cristãos-Novos, além da perdição de suas almas, me doeram sempre duas coisas:
     a 1ª, a mistura do sangue;
     a 2ª, a destruição do comércio.

     A este fim disse por muitas vezes a S. M. que, ou pusesse o comércio todo em Cristãos-Velhos ou buscasse remédio a que os interesses dele fossem de Portugal e não de Holanda, Veneza, Inglaterra e França, para onde os Cristãos-Novos traziam divertidos os seus cabedais; e sobretudo que mandasse estudar meios com que os Cristãos-Novos não casassem com os Cristãos-Velhos, sob pena de todo o Reino em cem anos ser judeu, assim como em cento e quarenta o era já metade dele. E que os ditos meios os comunicasse S. M. com os Snrs. Inquisidores e os resolvesse com eles, e os aprovasse pelo Sumo Pontífice, que é a maior comprovação de que não pretendi coisa que não fosse mui justa, justificada e pia, quanto mais contra a Fé. Nem em mim se pode ou podia considerar razão alguma pela qual houvesse de favorecer os judeus; porque, pela graça divina, sou cristão-velho, e três cunhados e seus filhos, que são os parentes que só tenho, são também cristãos-velhos.

     26. Não tenho nem tive jamais amizade com cristão-novo algum, exceto somente Manuel da Gama de Pádua, por ser o mercador a quem meu irmão remetia do Brasil os haveres do seu negócio e açúcares, e por ser prebendeiro da capela que me pagava os meus ordenados de pregador de El-rei.

     Nem os Cristãos-Novos me deram nunca coisa alguma, nem eu havia mister que eles me dessem, porque, além de não ser curioso nem cobiçoso de ter (como é bem sabido na minha Religião), para tudo que eu quisesse tinha parentes muito ricos que me davam o que eu não queria aceitar, e sobretudo tinha a liberalidade de El-rei, que sem limite punha em meu alvedrio a inteira disposição da sua fazenda a qualquer parte onde me enviava, não usando eu jamais desta largueza, antes restituindo aos ministros da Fazenda Real, até o que dos viáticos me sobejava, como de tudo pode ser boa testemunha Pedro Vieira da Silva.

     27. Nem acrescenta nada a sobredita suspeita ou presunção, o haver eu comentado ou seguido as Trovas do Bandarra, porque o tive sempre por cristão-velho, sem raça de mouro ou judeu, como ele mesmo afirma, onde, perguntado se é dos Judeus ou dos Agarenos, diz:

                    Senhor, não sou dessa gente
                    nem conheço esses tais;


e por me parecer que as ditas Trovas combinam grandemente com as profecias dos santos e opinião dos doutores acima referidos, de cuja fé ninguém duvida; e finalmente, além das razões apontadas neste e em outros papéis, porque tão longe estava de ter o Bandarra por favorecedor dos Judeus, que antes entendi sempre sentia ele também muito o ver ou prever quão grande dano havia de fazer à fé e limpeza do sangue dos Portugueses a mistura dos casamentos destes, e ainda a dos fidalgos com os Judeus, pelo dinheiro dos dotes. Este é, ou cuidaria eu que era, o sentido daquela sua trova:

                    A linhagem dos fidalgos
                    Por dinheiro é trocada;
                    Vejo tanta misturada,
                    Sem haver chefe que mande!
                    Como quereis que a cura ande,
                    Se a ferida está danada?,


onde se queixa o Bandarra que o sangue limpo (até o dos fidalgos) dos Portugueses, pelo interesse do ouro, se mistura com o dos Judeus, e que não haja chefe ou cabeça que mande e que impeça esta misturada, advertindo que a cura que o Santo Ofício aplica a esta ferida não é suficiente a evitar todo o dano dela, e vão lavrando e corrompendo todo o corpo do Reino. E importa pouco que cada ano pelo Santo Ofício se queimem dez judeus, se pelos casamentos crescem dez mil. E estes os favores que, entendia eu, fazia Bandarra aos Judeus e estes os remédios que lhes procurava.

     Conclusão: Defesa Final

     28. Finalmente, seja a última prova da minha fé, o rendimento do juízo e cega obediência dela, ainda contra as evidências certíssimas da própria consciência; pois, sendo assim verdadeira e indubitavelmente, e conhecendo com toda a interior certeza, que o sentido e disposição em que as minhas suposições foram interpretadas e censuradas, é totalmente diverso daquele em que as proferi e do que supus nelas, e do que pretendi significar por elas, entendo e creio, contudo, que as ditas censuras são muito justas, e as ditas interpretações muito verdadeiras, e as aceitei, venero e sigo muito de meu coração, sem embargo de se julgarem antes de ser eu perguntado nem ouvido.

......E se dilatei tanto tempo este inteiro e total rendimento, foi, não quanto à aceitação das censuras, que desde o primeiro dia foram aceitadas por mim, senão quanto à desistência das razões da minha inocência e pureza da tenção em que tinha proferido as proposições censuradas; foi, como tudo consta do processo, pela razão do escrúpulo em que não tive quem me segurasse a consciência, como procurei por todas as vias que me foram possíveis; conformando-me, finalmente, com o ditame do confessor, que foi a única pessoa com quem me pude aconselhar, o qual, depois de encomendar o negócio a Deus, resolveu que tinha obrigação de dar razão de mim e evitar o escândalo.

     29. E quão pronto estivesse o meu juízo e o meu ânimo para o dito rendimento e desistência total, bem se viu no mesmo ponto em que tive suficiente razão para depor o escrúpulo com a noticia de Sua Santidade haver aprovadas as ditas censuras;
sendo certo que, se na dita hora se me tivesse dado esta notícia, fora ela também a última de todas as dilações da minha causa, e se tivera evitado o escândalo da Cristandade e do Mundo, a cujas partes mais remotas sem dúvida terá chegado a notícia em dois anos, assim pela religião ser a mais conhecida e dilatada em todo ele, como também pelo nome da pessoa não ser o mais ignorado, principalmente entre aqueles a quem preguei a mesma Fé, de cujo juízo sou réu e preso, os quais terão justa razão de duvidar se acaso lhes ensinei alguns erros contra ela, e se se poderão fiar certa e seguramente da doutrina dos outros padres da Companhia, pois o que entre eles tinha o maior nome era tal qual tinha espalhado a fama e confirmado a prisão.

     30. Mas estou confiado na misericórdia divina daquele Senhor

                    qui mortificat et vivificat, deducit ad inferos et reduxit,
                    [O que tira e dá a vida, leva à sepultura e tira dela] (I Reis II,6)

que, assim como a justiça do Santo Ofício achou motivos em mim, que conheço por mui justificados, para uma tão extraordinária demonstração, assim a piedade do mesmo sagrado Tribunal acha motivos em si mesmo para restaurar o perdido e satisfazer ao dito escândalo.
     O Espírito Santo, que tão pontualmente assiste às resoluções desta Mesa, seja servido de guiar na decisão desta causa os juízos e ânimos de Vossas Senhorias ao que for de maior serviço de Deus e glória de seu divino beneplácito, que é a única lição em que estudo há mais de dezoito anos, e nestes dois últimos me quis Deus examinar e tomar conta dela, posto que eu lha não tenha dado tão boa como devia.

     31. Mas sabe o mesmo Senhor que, se em mim não houvera mais que eu, sem os respeitos do hábito que tenho vestido, nem uma só palavra havia de ter falado em meu descargo, pondo toda a causa aos pés de Cristo crucificado, deixando-a toda à disposição da sua divina Providência, desejando e tendo por melhor e mais favorável despacho o que fosse de mais descrédito e afronta, e de maior matéria de padecer, para em algum modo seguir as pisadas do mesmo Cristo e participar dos opróbrios da sua cruz.