GESTÃO: INSTITUTO TROPICAL

NA VOZ DA CRÍTICA

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FRANCISCO A.
LOBO

 

1. MONUMENTO ADMIRÁVEL DA LINGUAGEM

 

        Se, por um extravio (muito para lastimar!), Vieira não deixou aos seus compatriotas um brazão mais honrado da oratória cristã, deixou-lhes sempre, além dos primorosos exemplos de cartas e opúsculos pragmáticos, um monumento admirável da própria linguagem no corpo completo das suas obras.

                        Se o uso da nossa língua se perder, e com ele por acaso acabarem todos os
                        nossos escritos, que não são Os Lusíadas e as obras de Vieira; o português,                         quer no estilo de prosa, quer no poético ainda viverá na sua perfeita índole nativa,
                        na sua riquíssima cópia e louçania.
                        Será talvez opinião temerária, mas a minha é, que nenhum povo possuiu jamais nas
                        obras de um só homem tão rico e tão escolhido tesouro da língua própria, como
                        nós possuímos nas deste notável jesuíta.

        Ele empregou a linguagem culta e pública, e também a familiar e doméstica; falou a dos negócios, a da cortesia, a das artes, a dos provérbios: e como tratou tantos e tão diversos assuntos, pôde afirmar-se, fora de hipérbole, que em suas composições a resumiu toda inteira com felicidade singular.
         Dir-se-há: Basta logo por mestre clássico de Portugal neste ponto importante o padre Antônio Vieira! E porque não?... Muito mais atendendo-se que à cópia e variedade uniu todos os dotes que podem tornar uma língua, no seu gênero perfeita.
         Tudo é casto nos termos, tudo o é na frase: tudo é próprio, tudo é claro, e antes, sem exceção de lugar, a mesma clareza. Ainda quando é mais levantado, não há tão completo idiota, que não alcance o seu sentido .
         "Não lhe pode ser disputado, nem sei que se lhe dispute este merecimento. É tanto sem exceção, é tão perfeito mesmo nas matérias mais subidas e nos empenhos mais refinados do autor, que por todas estas considerações chega a ser sublime."

(Discurso Histórico e Crítico- Coimbra,1897)

 

2. ESTILO SIMPLES, SEM AFETAÇÃO

        Os autores do dicionário da Academia louvam a sua parcimônia, na inovação de vocábulos; e com justiça, porque são poucos inovados com tão bom juizo, que chegam a não se estranhar como inovados. Porém quisera eu, que insistissem mais no seu discreto uso de vozes e fórmulas antigas. O arcaismo é tentação mais perigosa para os curiosos de linguagem, do que é o seu contrário; e dobrava a tentação para um amador da singularidade. Mas resoluto à perfeição neste ponto, soube resistir a todas as tentações; e se fugiu igualmente do alheio, conteve-se com mais valor do antiquado.
         Vieira nesta parte tira toda a desculpa aos portugueses modernos, que ou erradamente julgam que se não deve falar e escrever senão como em tempos de el-rei D. Manuel, ou de propósito querem com este exótico alucinar leitores vulgares.
         A sua linguagem era a do seu tempo e a da sua nação; e como estava já muito depurada, e tomou nas suas mãos os últimos qui¬lates, é e será a verdadeira linguagem portuguesa em todos os tempos; de tal sorte que quanto se afastar deste padrão, tanto fugirá do seu puro natural, da sua sincera formosura. O mesmo bom discurso, que o levava a escolher os termos com pureza, o levava a construí-los segundo as regras próprias ou com correção. Apenas uma vez ou outra me parece menos correto. E digo me parece, porque me não atrevo a censurar um mestre tão respeitável sem grandes precates de desconfiança.
        O português terá mais brandura e quase igual clareza, na pena de Fr. Luiz de Souza; será mais ardente na de Fr. Thomé de Jesus. Mas em ambos falta muito mais aos ápices da correção do que em Vieira. Ambos eles tinham mais disposições para a eloquência, que afeiçoa, e que arrebata ; mas ambos possuíam muito menos a sua língua, e a empregaram com muito menos regularidade.
        E se ela se recusa em Vieira à doçura de Sousa e ao ímpeto e fogo de Fr. Thomé de Jesus, também se presta a declarar o fino e delicado por modo feliz, em que nenhum dos nossos escritores o emparelha.
        Leiam-se, ponderem-se os dois Sermões, nesta parte verdadeiramente admiráveis, das Exéquias de D. Maria de Athayde e do Mandato pregado em 1645.
        A oração fúnebre de D. Maria de Athaide está entre os Sermões do vol. XV. O do Mandato está no vol. IV(Lello e Irmão, Porto, 1951) . O último no seu gênero é peça rara, merecedora de se ler muitas vezes, e até de se entregar à memória.
        Quem ler ficará convencido de que o autor alcançou perfeitamente, e perfeitamente transpôs para a nossa língua, a concisão aguda e a maneira engenhosa de Sêneca. Vieira prezava muito os escritos de Sêneca, e tinha com ele grande conformidade no Entendimento: e se o seu gosto era praticamente ainda mais corrupto, era todavia sempre mais claro, e sabia-o imitar bem nas suas particulares virtudes.

3. ESPECIAL CONHECIMENTO DA LÍNGUA

        Algumas vezes ostenta Vieira o seu profundo e talvez singular conhecimento da língua portuguesa.
       (Veja-se a estátua de murta no Sermão XII do vol. III, n.° 502. o Sermão XI do vol. II, o II do vol. VII n.° 78, etc, etc).
        Mas não é um mercante fraudulento, que inculque os cabedaes, que não possue, para adquirir créditos, que não merece completamente. É em todo o rigor aquele, que se inculca, senhor opulentíssimo do tesouro mais copioso, com perfeita discrição para o empregar muito a propósito. Conhecia as palavras, o fraseado das artes, dos ofícios, das profissões, de que parece que devia andar mais distante; e falava acerca delas com a mesma propriedade e acerto, e com mais elegância do que os próprios professores!
        Onde grangeou, que tempo teve para acumular tais riquezas, um homem que passou os primeiros trinta anos fora do reino, que se divertiu no restante da vida para tão várias ocupações? Que ele estudou a língua, e muito, não pode haver dúvida; porque tal profundidade, notícia tão completa e tão esquisita não se podem haver sem grande estudo.
        Mas quando se empenhou neste estudo? Os primeiros Sermões já não merecem aqui muito reparo; os que pregou em chegando da América, são pela maior parte perfeitos em linguagem. Não foi pois no reino, não foi no uso da corte, não foi com leitura vagarosa em anos de muito discernimento.
        Resta portanto apelar para a prontidão antecipada e pasmosa, com que observava e meditava quase sem espaço de tempo; para a pro¬pensão insigne, que lhe facilitava o apreender rapidamente as mais sutis diferenças, as mais miúdas particularidades, as mais finas delicadezas, e até os mais imperceptíveis graus de decoro da locução; e enfim para a memória firmíssima, que conservava com escrupulosa fidelidade, ainda o adquirido com pequeno ou quase nenhum esforço.

(Idem, Ibidem)

4. TERMOS ADEQUADOS, FAMILIARES

        Não será bem que nos esqueça, já que falamos em decoro de locução, o discreto esmero, com que o guardava Vieira, o cuidado, com que afas¬tava tudo o que era mal soante ou abjeto, a repugnância que mostrava aos termos, que podiam ofender o ouvido e excitar ao mesmo tempo idéias menos delicadas. Desta repugnância é notável exemplo o nojo com que ele mesmo confessa em um dos seus Sermões, que evita o nome vulgar do imã.
        (Falando Plínio da Magnete, ou Calamita, ou pedra imã (que me não cabe na boca o nome do nosso vulgo) descreve, etc., vol. III, serm. III, n.° 86. No Sermão XIV do vol. VII, n.° 499 no IV do vol. XII, n.° 118, há outros dois excelentcs exemplos desta delicadeza, que o autor chama primor ou cortesia da língua).
        As coisas serão às vezes muito familiares, muito miúdas e até rasteiras; mas a linguagem, sem ser desproporcionada ou imprópria, nunca é senão a das pessoas ingênuas. E se de uma ou de outra palavra dos seus escritos se pode fazer hoje diverso juizo, a equivocação estará em se avaliar pelos tempos presentes a polícia ou falta dela, que lhe competia nos tempos do autor.
        Podem servir de exemplo análogo as palavras Diabo e Inferno, de que Vieira faz uso muito frequente; e que, vista a sua discrição em guardar o respectivo decoro, empregaria hoje com muito maior sobriedade.
         Mudam com os anos estes acidentes, mudam com os costumes; com que em uma idade não é senão singelo, em outra parece descomposto e pode ser que torpe. Em suma, que se a nossa língua, como agradecida e em certo modo desvanecida de se ver tratada por quem a sabia aperfeiçoar e honrar, se prestava com docilidade e condescendência grata a quase tudo que dela requeria Vieira, da sua parte Vieira, pelo desvelo, pela estimação e pelo mais fino respeito, plenamente lhe merecia tão primorosa complacência.

(Idem, Ibidem)

5. A POSTERIDADE, O VILIPÊNDIO E A JUSTIÇA

        Composto raro de imperfeições e de prendas insignes, serviu Antônio Vieira muito à religião, e não serviu menos à pátria; mas poderia servir a ambas ainda melhor. A pátria, se o louvou em seu tempo com demasia, também o tratou em alguns casos com desmerecidas esquivanças. O seu zelo político foi recompensado com injustos desterros; os cárceres da Inquisição de Coimbra foram pena sobejamente severa das suas singularidades; as suas prendas e serviços poderam ser mais atendidos e mais bem satisfeitos por el-rei D. Pedro II.
        A posteridade, mais cega ainda por ódio, insultou as suas egrégias qualidades, vilipendiou os seus talentos, caluniou as suas intenções, escureceu as suas obras, imputou-lhe aleivosamente culpas, perturbou, por último, e afrontou com furor bárbaro as suas cinzas.
        Para que vejam os homens (quero dizê-lo, como Vieira o disse em substância por várias vezes), para que vejam os homens, que o único motivo certo, mas por si só superabundante, para se encaminharem ao bem, e o porem em prática, está nas aprovações deliciosas da própria consciência, e nas esperanças da justiça invariável dAquele que na estimação do merecimento não pode ter erro, nem pode, em o remunerar, padecer defeito.

6. PARADOXO DE VIEIRA

        Tem sido notavelmente vária, e até contraditória, a fama do celebre jesuíta o Padre Antônio Vieira. Passou este homem entre os seus contemporâneos por um eclesiástico de grande espírito e zelo fora do comum; por um negociador penetrante e destro em matérias políticas; por príncipe dos oradores cristãos, ao menos em Portugal.
        Mas desde o meado do século XVIII, o seu zelo foi tido em menos conta de puro e desinteressado. Concedeu-se-lhe só o talento de formar e entreter intrigas cortezãs. Foi reputado orador quase inteiramente desprezível. E Antônio Vieira, tão preconizado e elogiado em quanto vivo, e ainda largo tempo depois da sua morte, e que acabou supondo, com certo fundamento, que as idades seguintes sequer o não honrariam menos, ficaria bem admirado e confuso, se ouvisse, passados sessenta ou setenta anos, as vozes já de indignação, já de desprezo, com que o tem tratado, ou maltratado, a posteridade!
         Vieira mesmo em sua vida provou, os golpes da detração e da sátira; mas eram censuras ou sarcasmos de poucos, compensados pelo aplauso de quase todos. E como era natural que ele os tivesse por nascidos da inveja, também era natural que o acompanhasse a esperança de que não durariam além da sua morte, termo ordinário das tramas e furores da inveja.


                        ( D. Francisco Alexandre Lobo (Bispo de Viseu) in Discurso Histórico e Crítico
                        acerca do Pe. Antônio Vieira e suas Obras. Coimbra. Imprensa da
                        Universidade,1897).