GESTÃO: INSTITUTO TROPICAL

NA VOZ DA CRÍTICA

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ERNESTO PEREIRA
CARNEIRO

 

1. VIEIRA - GRÃO BENEMÉRITO DA PÁTRIA
- APOLOGIA-

       Fonte inesgotável, em que se têm inspirado tantos engenhos, no cristal de tuas águas, a nossa língua mira-se altiva e se desvanece e rejubila de se ver tão formosa e louçã.
       Grande benemérito da pátria, é por demais justa a homenagem que ora te rendemos, os tributos de admiração consagrados à tua memória, apoteose que te fazem duas nações que se abraçam, proclamando em uníssono tua glória e teu renome.
       Se em Portugal tiveste as mantilhas que te enfaixaram a infância, na Bahia tiveste a escola, onde começaste a soletrar o verbo de tua grandeza; aqui provaste e acrisolaste teus dotes geniais.
       Aqui, no meio de teus irmãos que te entoaram o réquiem, nesta terra, a quem não esquecem teus triunfos, tiveste a mortalha, que te envolveu as relíquias venerandas.
       Se a Bahia não te sentiu os primeiros vagidos, ouviu-te os derradeiros suspiros, recebeu em seu seio, amorosamente maternal, as tuas últimas lágrimas,
        e soluçando, recolheu no cofre de seu coração as últimas frases que murmuraste no belo idioma que soubeste honrar e engrandecer.
       Enquanto do mapa etnológico não desaparecerem a nação portuguesa e a brasileira, vinculadas por laços que as identificam, no convívio comum dos povos;
       enquanto no quadro das línguas subsistir a que brasileiros e portugueses falamos;
       enquanto palpitar um coração verdadeiramente português ou brasileiro, inflamado do fervoroso patriotismo que resumbra de todas as tuas páginas imortais,
       não morrerá tua glória, em teu nome, nem os louvores e louros imarcescíveis de que a humanidade inteira te coroa,
       podendo aplicar-te o verso que nos lábios de seu herói põe o poeta mantuano.
       Semper honos, nomenque tuum, laudesque manebunt. (Virg.)
       [A tua glória, o teu nome e os teus feitos serão perpetuamente celebrados]

       Conferência em comemoração de Bicentenário do Pe. Antônio Vieira, em Salvador – Bahia,aos 13 de julho de 1897.

Nota: O autor polemizou com Rui Barbosa em questões do Vernáculo.


2. MAGIA DA PALAVRA

        Homens há que o são tantas vezes, quanto as várias manifestações da atividade intelectual, a que especialmente entregam o espírito, manifestações que são os eixos polares de todas as suas produções, em cujo âmbito gira todo o seu engenho fecundo e inventivo.
        Tal foi o padre Antônio Vieira: ao mesmo passo catequista e apóstolo, orador e filósofo, professor e literato, diplomata e político, patriota e mestre da língua. Sempre grande, sempre de intuitos alevantados, sempre igual a si mesmo, sempre o mesmo Vieira (...)
        Que orador sagrado, com a magia de sua palavra, sempre animada, viva, garrida, insinuante e convincente, com o encanto e donaire de sua elocução, sempre fácil e desempeçada, com os lances arrebatadores de sua eloquência, veemente e senhoril, com os conceitos filosóficos, com que fulminava os reis e os grandes, com a ironia perspicaz e pungente com que lhes disfarçava a acrimônia da censura e lhes estigmatizava os vícios e os desacertos, conquistou mais aplausos entre seus contemporâneos, maravilhando até o estrangeiro, que o escutava com respeito e lhe admirava o vasto saber e a profunda notícia, que em alto grão possuía das Sagradas Escrituras?
        Quem, em tão verdes anos, suprindo com o saber o que lhe faltava em idade, preencheu com mais lustre e luzimento a cátedra de professor, ilustrando a ciência de Quintiliano, merecendo os aplausos da culta Companhia, de que era glória e ornamento?
        Quem, em seu país e em seu tempo, versou com mais discreta diligência os textos exemplares da literatura antiga e da coeva, donde a longos sorvos auriu as sábias lições, e a finura de tato de que entretecia as suas cartas e os seus discursos, e em que emoldurava todos os escritos quesaíam de sua mão magistral? Que homem foi em seu país investido em mais espinhosa missão, honrando-lhe no estrangeiro o nome e as tradições?
        Como patriota, em suma, tem o Padre Antônio Vieira lugar reservadíssimo na galeria dos grandes homens; para ele é a pátria o fanal seguro em que tem os olhos fitos durante toda a sua longa, tribulada e tempestuosa existência; é um raio de esperança, de doçura e de amor, que o anima e conforta nos desalentos e desenganos da vida.

3. CAMÕES, DANTE E VIEIRA
- ESPÍRITO NACIONAL -


        Como nas produções de todo o escritor clássico seja qual for o século que o viu abrir os olhos à luz, nos Sermões de Vieira, em suas cartas, em todos os seus escritos, transpira, como nos Lusíadas de Camões, na Divina Comédia de Dante e nos dramas de Shakespeare, aquele espírito nacional, que faz, fez e fará sempre deles verdadeiros padrões da glória de sua nação, conquistando uma popularidade, que os séculos não apagarão, e fazendo sempre vibrar a alma nacional, que os alentou e inspirou.
        No gênero epistolar, um dos mais difíceis da espinhosa e traba¬lhosa arte de escrever (...) mostra-se Vieira, contudo, um consumado escritor, no castigado e primoroso da frase, na elegância e perspicuidade do estilo, na nobreza e vivacidade das metáforas, no relevo das imagens, no substancioso das sentenças, na cadência numerosa do discurso, no apropriado do dizer sempre terso, genuíno e correto. Se as cartas do orador romano Cícero são copiosos e ricos mananciais para a história literária e política da época tumultuosa em que viveu, não o são menos as do escritor português para a história portuguesa e brasileira de sua época, igualmente agitada e tempestuosa.
        Podemos, em suma, aplicar em tudo a Antônio Vieira o que avisada e judiciosamente escreveu este, com referência a frei Luiz de Souza, na censura à 3a parte da História de S. Domingos:
        "O estilo é claro com brevidade, discreto sem afetação, copioso sem redundância e tão corrente, fácil e notável, que, enriquecendo a memória e afeiçando a vontade, não cansa o entendimento".
       "A linguagem, tanto nas palavras, como na frase, é puramente da língua em que professou escrever, sem mistura ou corrupção de vocábulos estrangeiros, os quais só mendigam de outras línguas os que são pobres de cabedais da nossa, tão rica e bem dotada, como filha primogênita da latina."
       "A propriedade com que fala em todas as matérias é como de quem aprendeu na escola dos olhos. Nas do mar e navegação, fala como quem o passou muitas vezes; nas da guerra, como quem exercitou as armas; nas das cortes e paço, como cortesão e desenganado; e nas da perfeição e virtudes religiosas, como religioso perfeito."

 

VIEIRA - O ECO DE SUA VOZ
EXALTAÇÃO

       Há uma dupla correnteza de ações e reações, de influências, a que chamaremos centrífugas e centrípetas, às quais se ligam a vida mesma dos idiomas, e que a todos arrastam fatal e instintivamente.
       Sombra do grande orador, rei e glória do púlpito, o peso esma¬gador de dois séculos comprime-te a argila caduca, donde desprendeste o vôo para as infindas e insondáveis regiões do infinito.
       Mas o eco de tua voz ainda vive e parece reboar pelas abóbadas de nossos templos, que abrasaste com o fogo dos raios de tua eloquência pujante e vigorosa.
       Ainda as naves sagradas, a quarenta lustros de distância, parece lobrigarem teu vulto sereno e majestoso a despedir torrentes caudais, que as inundaram de luz e de fé.
       Nosso céu de púrpura e anil, que tantas vezes te sorriu.
       Nossos cerros e penedias, as fragas de nossas serras, nossos rios gigantescos, nossas alpestres florestas, que te sentiram os passos, te perceberam os movimentos, te ouviram as queixas e os segredos e foram testemunhas de tuas lutas, de teus esforços, de lua abnegação, das ingratidões e injustiças que sofreste, de teu heroísmo em favor dos índios escravos,
       guardam ainda indelével tua imagem veneranda e quais harpas sólias ou imensos órgãos suspiram e repetem teu nome e teus louvores.
       Insigne e nunca assaz celebrado escritor,
       quantos reis, quantos fidalgos e grandes, a despeito das censuras com que os verberavas, gostosamente trocariam pelo cinzel de tua inspirada palavra a púrpura que trajavam, os títulos nobiliários que os distinguiam, as galas e telas de que se ornavam, os arminhos e brocados de que os enfeitava a vaidade e porventura a ignorância frívola, presunçosa e vã?
       Se muitas vezes no púlpito sagrado tua palavra, como a de Bussuet, era um raio, que feria e fulminava;
       de tua pena, outras vezes, como da de Bernardes, destilava o mel, com que comovias e enternecias.
       Aprimorado sacerdote do dizer castiço e de bom cunho,
       que pintor da palavra achará em sua paleta cores para traçar e desenhar condignamente teus finos quilates na língua vernácula?