CRUZEIRO HISTÓRICO
PELOS ESPAÇOS DE VIEIRA

DIÁRIO DE BORDO

 

Fevereiro 2007

Março 2007

Abril 2007

Maio 2007

Junho 2007

Julho 2007

Agosto 2007

Setembro 2007

Outubro 2007

Novembro 2007

Dezembro 2007

Janeiro 2008

Fevereiro 2008

Março 2008

 

01 de Outubro de 2007, Belém do Pará.
01 28´37”S, 48 27' 50”W

Apresentar as missões dos jesuítas no Maranhão e Grão Pará como uma empreitada de bandeirantes da fé e da civilização choca muita gente. Mas foi isso mesmo que aconteceu: a obra reiniciada nestas terras por Vieira não foi apenas de catequese, ela fazia parte de uma estratégia muito mais vasta que só mesmo alguns espíritos mais esclarecidos enxergavam e mesmo esses eram poucos. Essa estratégia só começou a tomar forma em 1655, depois de mais de um ano inteiro sem orientação definida, e daquela famosa viagem ao reino onde ele foi buscar os instrumentos de que precisava para realizar o seu trabalho. Foi isso mesmo que ele explicou do alto do púlpito no Sermão da Sexagésima: “E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a casa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? Não por certo”. Não podia o missionário ser mais claro sobre os objectivos da sua viagem: munir-se de novas alfaias para atingir os seus objectivos.

Tivesse sido apenas uma missão de catequese, ela não teria provocado a raiva dos colonos e das outras ordens religiosas, não teria despoletado, um século depois, o ódio do marquês mais poderoso do reino e do seu irmão que governava o Pará. As missões foram muito mais do que uma tentativa de converter os indígenas à fé cristã e baptizá-los, elas foram um trabalho de unificação do território brasileiro, uma abertura de caminhos que viabilizaram o surgimento de uma nação. Na cadeia do forte de São Julião o padre João Daniel, conhecedor como ninguém das missões do Pará, escrevia: “E para que ninguém duvide desta verdade, ainda sem sair da mesma América, a farei evidente com tantas testemunhas quantos são os tupinambás do Brasil, aos quais só um Anchieta fez depor as armas, quantos são os nheengaíbas do Pará, aos quais só um Vieira rendeu, e os barbados do Maranhão, aos quais unicamente um Alagridão domou…” Vieira viu mais longe do que nenhum outro que eram necessárias pontes e caminhos, aquelas mesmas pontes do Sermão de São Gonçalo e do papel moeda da União Europeia, para criar uma nação global. Os caminhos do Brasil eram por terra e por água, os da serra de Ibiapaba e os do rio Tocantins, (e também do Xingú, do Tapajós e do Madeira, onde ele não chegou a ir, mas para onde tencionava enviar os seus padres), esse grande e estratégico rio “que abaixo do Amazonas é o mais importante rio, não só do Estado do Pará, mas ainda de toda a América Lusitana, por razão de ser o mais breve e acomodado caminho para todas ou quase todas as minas”.

Foi graças a esses caminhos que Belém se tornou uma das jóias da coroa portuguesa, onde o irmão do marquês de Pombal mandou construir um sumptuoso palácio de governo. “É das maiores e mais populosa da América portuguesa; e talvez que também das mais ricas, por acudirem a ela todas as riquezas de todo o Amazonas e de todo o distrito da Majestade Fidelíssima, e ouro das minas de Mato Grosso, e das mais que tem o rio nas suas margens (…) E já os moradores do Pará parece o adivinham, porque já corre entre eles uma como profecia de que a sua cidade se há de vir a chamar o Porto do Ouro.”

O padre João Daniel, um dos missionários jesuítas expulsos por ordem do Marquês de Pombal, viveu 18 anos nas masmorras portuguesas, onde escreveu o seu impressionante texto, só recentemente publicado (2004) numa edição de má qualidade. Ele merecia dos seus conterrâneos de Viseu, de todos os portugueses e dos brasileiros uma justa homenagem pelo seu trabalho pioneiro no mundo, uma obra de antropologia tão bem estruturada que ainda hoje é o mais completo tratado do género sobre a Amazónia. O jesuíta viveu 16 anos no Pará, onde foi administrador dos bens da Companhia entre 1741 e 1757 e o Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas foi escrito durante os quase 19 anos que passou na prisão, entre 1757 e 1776. O texto, demasiado importante para cair em mãos alheias, foi-lhe retirado à medida que era escrito e veio para o Brasil na Biblioteca Real em 1807. Uma parte foi parar à Biblioteca da arquidiocese de Évora, donde saiu para os Arquivos Públicos nos tempos agitados dos primeiros anos da República.

 

02 de Outubro de 2007, Belém do Pará.
01 28´37”S, 48 27' 50”W

Os jesuítas não foram os primeiros missionários a chegar às terras do Pará. Em 1653, já cá estavam instalados os franciscanos (1617), os carmelitas (1626) e os missionários das Mercês (1639), em cujos terrenos se instalaram de início os padres da Companhia, antes de obterem espaços próprios cedidos pela câmara. Não se sabe porque razão os doze companheiros do padre Luís Figueira, um veterano das missões do Maranhão, foram naufragar com o seu chefe na ilha de Marajó em 1643, onde foram devorados numa grande festa antropofágica. Depois chegaram outros franciscanos, os da Piedade (1693) e os Capuchos da Conceição da Beira e Minho (1706). A quantidade de ordens religiosas mendicantes no Pará era tão grande que em dada altura havia quase um religioso por cada homem branco na cidade, o que provocava ciúmes e rivalidades. A quantidade não era sinónimo de qualidade nem de uma vida religiosa mais intensa do que em outras partes do Brasil ou do mundo, antes pelo contrário. Como os jesuítas não dependiam das esmolas dos colonos para sobreviverem, dispondo de fundos régios, foram desde o início alvo de uma especial vigilância e do rancor dos outros religiosos.

A instalação das primeiras missões seguiu o mesmo ritmo da ocupação do espaço pelos colonos. Estes não se instalavam em terrenos vazios, mas junto às aldeias indígenas de “índios mansos”, onde conquistavam a simpatia dos nativos e angariavam a mão de obra. Por isso as missões seguiam os colonos, ao longo da costa e pelas margens dos rios. Em menos de meio século surgiram entre o Maranhão e o Pará uma dezena de núcleos de colonização e de missões: Alcântara, Gurupi, Maracanã, Curuçá, Vigia, tinha ainda Mortigura na ilha do Marajó e as aldeias ao longo do “caminho de terra” que era a via do rio Guamá, mais para cima Cametá e Gurupá subindo para o Amazonas. A ocupação colonial do Pará foi a mais tardia de todo o litoral brasileiro e a mais desordenada. Em alguns pontos os primeiros europeus que procuraram estas terras foram franceses e holandeses, que pouco ou nada deixaram de duradouro. Era também a costa mais distante do resto do Brasil, sendo muito mais fácil navegar do Pará para o reino do que para Pernambuco; não fossem conhecidas e utilizadas as vias de comunicação fluviais com o interior do continente, este território estava destinado a ter as suas próprias fronteiras e outro destino. Tudo mudou, porém, com a acção de Vieira e dos seus padres, o que também trouxe a longo termo benefícios materiais consideráveis para a Companhia, que se tornou um empreendimento rentável e cobiçado. Só no século XVIII é que o Pará teve um ordenamento político e económico sustentável, com o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1758), irmão do marquês de Pombal, que deu a este território a sua primeira oportunidade de crescimento, com medidas contundentes. Durante a ausência do governador por dois anos, de 54 a 56, governou o Pará D. frei Miguel de Bulhões, natural de Aveiro.

A vida dos colonos do século XVII era extremamente precária. Vindos do continente ou dos Açores, analfabetos e toscos, habituados a uma lavoura de subsistência, não conseguiram criar neste novo mundo estruturas comerciais para os seus produtos nem se atreveram a construir as bases de uma sociedade adequada aos novos espaços. Alguns mais atrevidos e com rudimentos de instrução, degredados pela justiça, fugidos das guerras de Pernambuco ou desertores das armadas, impuseram-se como chefes de pequenas “capitanias”, aproveitando-se da ignorância dos demais. A acção missionária dos padres junto dos indígenas era estorvada pelo baixo perfil social e moral dos colonos. Cultivava-se cana de açúcar, algodão, milho e feijão, mandioca, cacau, criava-se algum gado, quase tudo destinado à sobrevivência do núcleo familiar alargado que depressa crescia com a promiscuidade sexual e a escravatura. As madeiras abatidas esperavam a chegada de algum navio que as pudesse carregar e quase todos os colonos eram tentados pelo garimpo, de que muito poucos beneficiaram. Alguns produtos destinavam-se à troca e não circulava moeda. Ainda nos primeiros anos do século XVIII a moeda que mais circulava no Pará eram grãos de cacau.

Amaury Braga Dantas é professor na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Pará e assessor da Reitoria, nascido aqui vai fazer meio século. A sua paixão é contar a história romanceada do seu Estado, da epopeia das suas gentes, e o seu segundo romance, Cidades (2005), narra a aventura dos jesuítas nos primeiros tempos da colonização. Passados mais de 350 anos, aquela empreitada ainda tem muito que contar!

 

 

 

GESTÃO: INSTITUTO TROPICAL