CRUZEIRO HISTÓRICO
PELOS ESPAÇOS DE VIEIRA

DIÁRIO DE BORDO

 

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GESTÃO: INSTITUTO TROPICAL

02 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

Chove na cidade de Salvador, a terceira maior do Brasil, contando para cima de três milhões de habitantes; uma frescura que arrepia levemente a pele e deixa no ar um perfume de flores molhadas, de asfalto lavado, de roupa enxugada. Há 450 anos não havia aqui quase nada, quase ninguém, como relatava o padre Manuel da Nóbrega: Chegámos a esta Bahia a 29 dias do mês de Março de 1549. Andámos na viagem oito semanas. Achámos terra de paz e quarenta ou cincoenta moradores na povoação que antes era; receberam-nos com grande alegria e achámos uma maneira de igreja, junto da qual logo nos aposentámos os padres e irmãos em umas casas a par dela. (…) A terra cá achamo-la boa e sã. (Carta ao padre Simão Rodrigues) De repente a povoação passou a contar mais de 1.000 pessoas, com a chegada da frota do primeiro governador Tomé de Sousa na qual vinham também os primeiros jesuítas dirigidos por Nóbrega. Era gente de toda a laia: 400 degredados, administradores, colonos, aventureiros, homens de ofícios, com os quais se pretendia construir uma cidade e organizar a exploração agrícola da região, baseada na cana de açúcar. Salvador seria a capital política, religiosa, económica e cultural da colónia do Brasil até 1763.

Uma das primeiras decisões do governador, cumprindo as ordens do rei D. João III, foi a de construir uma igreja sólida e duradoura. Nóbrega e Tomé de Sousa escolheram um local junto à praia e o templo foi dedicado a Nossa Senhora da Conceição. Foi essa primeira igreja de pedra e cal que serviu de matriz da diocese, quando chegou o primeiro bispo, D. Pedro Fernandes Sardinha, em 1552. Por ela passou José de Anchieta em Junho de 1653, a caminho das missões do sul do Brasil. Com os anos o templo cresceu em dimensão e beleza e é hoje um dos monumentos mais emblemáticos da cidade de Salvador, conhecido por Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Em 1633 o padre António Vieira tinha apenas 25 anos e ainda não tinha sido ordenado sacerdote, mas foi ele o escolhido para pregar nesta igreja o Sermão da Quarta Dominga da Quaresma (t. IV). Foi o seu primeiro sermão em público; já se tinha exercitado antes na igreja do Colégio, para os seus colegas, com o Sermão do Nascimento do Menino Deus. O templo fica a pouco mais de 200 metros donde está atracado o CHIC e é a primeira imagem que vemos cada manhã, ao pisarmos o convés, faça sol ou faça chuva.

Entre nós e o templo tem os mastros dos outros veleiros e a azáfama dos pescadores que trazem nos seus botes e canoas a pesca da madrugada para vender no local que ainda hoje chamam de praia, uns poucos metros de areia imunda, recheada de dejectos. De vez em quando ainda vara nesta praia o último saveiro à vela de toda a baía, vindo de Maragojipe, com farinha de mandioca e outros produtos do campo para o mercado da cidade.

03 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

Do lado da Baía de Todos os Santos, a menos de 100 metros da proa do CHIC, está a fortaleza de São Marcelo, magnificamente restaurada e transformada em centro cultural. A cidade fundada por Tomé de Sousa e Nóbrega à beira da praia estendeu-se entretanto para uma parte mais elevada, num planalto fértil sobranceiro à praia estreita. Foi desta cidade alta que o jovem noviço António Vieira, com 16 anos, presenciou a chegada da armada holandesa comandada por Jacob Willekens e a luta que se travou para tentar defender a cidade que não resistiu, acabando ocupada e saqueada. A principal fortaleza que a defendia, construída na água a 200 metros da praia, não estava ainda concluída devido a discórdias entre o bispo e o governador e as frágeis muralhas que se elevavam acima da água foram completamente arrasadas pelos canhões dos navios holandeses. Padres, estudantes, irmãos e escravos abandonaram o colégio e refugiaram-se numa aldeia de índios a cerca de 25 quilómetros, a aldeia do Espírito Santo, hoje Vila de Abrantes. Era o mês de Maio de 1624; dois anos depois António Vieira foi incumbido de redigir o relatório anual ao superior geral da Companhia de Jesus. O texto, escrito em latim quando ele tinha 18 anos e mais tarde traduzido por ele mesmo em português, é o primeiro que conhecemos dele, uma magnífica reportagem à maneira barroca da época, onde se misturam a descrição de um cenário de guerra presenciado, as considerações éticas e religiosas, pormenores de acções heróicas e alguma fantasia pelo meio.

Simples e escorreita é a descrição que faz da cidade e seus arredores: Abre esta costa do Brasil, em treze graus da parte do sul, uma boca ou barra de três léguas, a qual, alargando-se proporcionalmente para dentro, faz uma baía tão formosa, larga e capaz que, por ser tal, deu o nome à cidade, chamada, por antonomásia, Bahia. Começa da parte direita por uma ponta, a qual, por razão de uma igreja e fortaleza dedicada a Santo António, tem o nome do mesmo santo; e, correndo em meia lua o espaço de duas léguas, se remata em uma língua de terra, a que deu o nome de Nossa Senhora de Monserrate uma ermida consagrada à mesma Senhora. No meio desta enseada, com igual distância de ponta a ponta, está situada a cidade, no alto de um monte, íngreme e alcantilado pela parte do mar, mas por cima chão e espaçoso; rodeiam-na por terra três montes de igual altura, por onde estende seus arrabaldes, dos quais o que fica ao sul tem por remate o Mosteiro de São Bento, e no que lhe responde ao norte, está situado o de Nossa Senhora do Carmo; o terceiro está a leste e menos povoado. É a praia da cidade em baixo estreita, e defendem-na três fortes, dois em terra e um no mar, avantajado aos mais por razão do sítio e fortaleza. (Cartas,I, 11-12)

No tempo da juventude de Vieira a cidade e seus arrabaldes contava com cerca de 25.000 habitantes, entre colonos brancos, indígenas e escravos negros. Hoje, multiplicados mais de cem vezes, misturadas as raças, esculpidos os corpos e ensinadas as mentes, Salvador é uma das cidades mais coloridas e feéricas do mundo, que fala, canta, dança, reza e chora em português.

 

04 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

Já aos 25 anos o jovem Vieira, vivendo na colónia, do outro lado do mundo em relação à capital do reino, tinha uma noção muito clara e objectiva dos defeitos e das qualidades do povo português. Do púlpito desta igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em presença do bispo e das autoridades civis e militares (que o sermão era sobre a guerra) ele não hesitou, logo no seu primeiro sermão público, em demonstrar a sua perspicácia e a força do seu carácter: Não há votos mais perniciosos na paz e na guerra, nem mais bem aceites comummente aos que governam o leme, que os que por poupar a fazenda impossibilitam as acções, com que o que havia de ser trabalho, é ociosidade, e o que havia de importar muito, se resolve em nada.(…) Homens de espíritos alentados são mais para desfazer as dificuldades na execução, que para consultar se se devem ou não empreender. (IV,8-9)

Uma chuva grossa e persistente abate-se sobre a cidade, inundando as ruas, levando na enxurrada o lixo da feira e a terra vermelha arrancada do morro. Por momentos o céu mostra a sua graça de azul e o sol espreita entre dois cúmulos gigantescos. Mas de repente forma-se uma nuvem negra na baía que o vento empurra para a cidade, estendendo por cima dela um manto estranho e sombrio. Estas imagens faziam parte do quotidiano de Vieira. Em 1640 ele tinha 33 anos e foi o pregador escolhido para saudar, na igreja do hospital da Misericórdia, a chegada do primeiro vice-rei do Brasil, nomeado por Filipe III, D. Jorge de Mascarenhas, marquês de Montalvão. O pregador não deixou passar a ocasião de confirmar a coragem e a ousadia que sempre pautariam a sua conduta ao longo de uma vida prodigiosa: Muito deu em seu tempo Pernambuco; muito deu e dá hoje a Bahia, e nada se logra; porque o que se tira do Brasil, tira-se ao Brasil; o Brasil o dá, Portugal o leva.(…)

Com terem tão pouco no céu, os ministros que isto fazem, temo-los retratados nas nuvens. Aparece uma nuvem no meio da Bahia, lança uma manga ao mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza grande quantidade de água, e depois que está bem cheia, depois que está bem carregada, dá-lhe o vento e vai chover daqui a trinta, daqui a cincoenta léguas.
Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta, se na Bahia tomaste essa água, se na Bahia te encheste, porque não choves também na Bahia? Se a tiraste de nós, porque não despendes connosco? Se a roubaste a nossos mares, porque não a restituis aos nossos campos? Tais como isto são muitas vezes os ministros que vêm ao Brasil – e é fortuna geral das partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens, passam as calmas da linha, onde se diz que também refervem as consciências, e em chegando, verbi gratia, a esta Bahia, não fazem mais que chupar, adquirir, ajuntar, encher-se (por meios ocultos mas sabidos), e ao cabo de três ou quatro anos, em vez de fertilizarem a nossa terra com a água que era nossa, abrem asas ao vento, e vão chover a Lisboa, desperdiçar a Madrid. (Sermão da Visitação de Nossa Senhora, IX, 348-9)

Poucos meses depois ele atravessava o Atlântico acompanhando o filho do vice-rei de Salvador a Lisboa, porque um acontecimento inédito tinha sacudido o reino: o fim da administração espanhola e a aclamação de D. João IV. Este acontecimento e o encontro com o novo rei, primeiro de uma dinastia bastarda e vulnerável, iriam modificar o rumo e o ritmo da sua vida. Só regressaria a casa 40 anos mais tarde, após muitas peripécias e um arraial de utopias.

 

05 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

Hoje eu vou deixar de lado as coisas sérias e eruditas que justificam a nossa presença em Salvador da Bahia e que têm preenchido as páginas anteriores, para satisfazer a curiosidade de muitos dos leitores deste Diário de Bordo que se interrogam sobre os detalhes da nossa vida de marinheiros de ocasião a bordo do CHIC.

Uma das cabines do veleiro, a de estibordo à ré, está atarracada com o material necessário para o nosso trabalho: câmaras de vídeo, câmaras fotográficas, impressoras, livros, papéis, documentos da aparelhagem electrónica, acessórios do material de foto e de vídeo, armazenamento de documentos, e coisas do género. Um pandemónio organizado, tudo no seu lugar, guardado em caixas estanques ou em armários onde a água não sonha sequer chegar. É o nosso santuário, a nossa caixa blindada onde guardamos tudo aquilo que vamos acumulando, salvaguardado em cópias exteriores, garantia da nossa sobrevivência nos anos que se seguem. A ventania pode fazer o barco deitar-se na água, as vagas podem passar-nos por cima, que tudo ficará no seu lugar. Ainda tem uma mesa amovível onde podemos trabalhar com um computador, com espaço para dois ou três livros e mais umas tralhas.

A outra cabine da ré, a bombordo, é o meu espaço privado. Tem o conforto de uma sala de banho minúscula mas confortável, com duche quente e fria, enfim todo o conforto da era espacial. Alguns dos armários estão ocupados com livros e papéis de todas as cores e feitios, que se vão seleccionando e classificando à medida e ao ritmo dos acontecimentos. Fecho a porta, meto uma musiquinha, e deixo o mundo desabar. Deitado, os meus ouvidos ficam a menos de 50 cm do mecanismo do leme, que eu sinto rodar nos mínimos movimentos; o casco desliza na água fazendo um suave murmúrio que vira ruído quando o leme intervém de modo violento. Aí eu acordo, levanto o braço, abro o postigo e berro para o homem do leme: Olha o rumo! Depois viro-me para o outro lado e volto a adormecer, quando não tenho que dar um pulo da cama para acudir a qualquer emergência.

A meio do veleiro fica o salão onde com a mesa e os sofás que acomodam confortavelmente seis pessoas a bombordo; por detrás dos sofás ficam os armários onde se armazenam os víveres e por debaixo deles fica o depósito de 400 litros de água doce. Neste momento, uma parte dos armários destinados aos víveres serve de biblioteca, porque assim os livros ficam mais à mão e, estando em terra, é-nos fácil comprar cada dia o abastecimento de que necessitamos. A estibordo fica a mesa de navegação, neste momento cheia de papeladas de toda a espécie menos cartas marítimas, com os instrumentos desligados, servindo de mesa para um dos computadores. Por debaixo dela esconde-se o depósito de 140 litros de gasóleo. Logo a seguir fica o frigorífico, indispensável neste clima quente, onde se refrescam os líquidos e os sólidos do nosso alimento quotidiano; em cima do frigorífico acumulam-se neste momento caçarolas e tralhas da cozinha; por detrás ficam outros armários com mantimentos: é o sítio do arroz, das massas, do azeite, do vinagre, açúcar, sal, e outras miudezas do género. Logo a seguir vem o fogão eléctrico, o forno e o micro-ondas, ao lado das duas bacias para lavar a loiça, com água quente e fria, uma entrada de água salgada, duas gavetas para os talheres e alfaias de cozinha mais um espaço para produtos de limpeza. Deixo por conta os demais detalhes, como os suportes dos rolos de papel de cozinha, panos e guardanapos, luvas térmicas, pranchas de madeira, potes, cafeteiras e panelas.

Mais à proa há duas cabines, cada uma com dois beliches, espaço do Luís, do Jaime e do Dietmar, com uma sala de banho comum às duas, dotada do mesmo conforto de água corrente quente e fria. Tudo muito minúsculo, onde cada coisa tem que estar no seu devido lugar. O cão de bordo, Qué Qué, dorme no pequenino corredor que dá acesso às cabines em cima da sua almofada, mas também procura outros pequenos espaços aconchegados quando o tempo está ruim, um deles é o quarto de banho. Quando está fora fica sempre com trela e harnês, para não disparar pela borda fora.

Pelo convés temos acesso ao compartimento das velas, um volume de cerca de dois metros cúbicos onde guardamos as velas de reserva, o bote pneumático e respectivos acessórios. Depois vem o poço da corrente da âncora onde fica o guincho eléctrico e ainda sobra espaço para os cabos de atracagem.

À ré fica o “cokpit”, que pode acomodar toda a tripulação, a roda do leme, armazenagem de cabos, defensas, bidões suplementares de gasóleo, vassouras e tubos, cabos eléctricos e telas de cobertura, o gerador eléctrico e uma impressionante quantidade de coisas que servem para tudo e mais alguma coisa, desde as linhas de pesca até à comida do cão e às bacias de plástico para lavar a roupa. No pedestal da roda do leme fica uma mesa desmontável, especialmente útil nas escalas e utilizável no mar com bom tempo. Ao “cokpit” chegam todos os cabos que comandam as velas, e nele ficam instalados os seis “winches” sem os quais seria impossível domar os 140 metros quadrados de tela que nos fazem correr pelo mar ao sabor do vento. Numa armação de tubos de aço inoxidável estão instaladas as antenas do radar, do GPS, do VHF, da TV, do Navtex e de mais algumas comodidades que nos fazem crer que somos os senhores dos mares.

São treze metros de tanta coisa que parece impossível termos espaço para nos mexermos. Mas aí é que está o milagre: com cada coisa no seu lugar até sobra espaço para nós, que navegamos, trabalhamos, estudamos, dormimos e sonhamos no meio de um oceano, por vezes calmo e acolhedor, outras vezes violento e ameaçador. Os veleiros que navegam de verdade não apresentam aquela imagem de brinquedo polido e cromado que se vê pelas marinas: aparentam-se mais com uma oficina de trabalho onde se penduram inúmeros e variados objectos de indispensável utilidade, todos eles prontos para servirem no momento exacto, na hora certa. O mar é cruel e não perdoa os desprevenidos. Mas, quem sabe, até há quem goste de navegar!

06 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

Foram nove os púlpitos das igrejas de Salvador onde o padre António Vieira pregou. Quase todos os templos estão de pé, à excepção da primeira Catedral, demolida em 1933, da qual apenas restam os vestígios arqueológicos; algumas foram sofrendo várias modificações ao longo dos anos e têm agora uma aparência muito diferente do que eram na primeira metade do século XVII. A grande maioria dos sermões exibidos nestas igrejas (cerca de 30) foi pregada antes da sua vinda para Portugal em 1641; depois que voltou definitivamente para a cidade da sua juventude, aos 73 anos, certamente que subiu muitas vezes aos púlpitos, mas poucos desses sermões decidiu publicar. Os mais importantes são o que pregou na igreja da Misericórdia, a oração fúnebre das exéquias da primeira esposa de D. Pedro II, a rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia em 1684, e o que pregou na Catedral, o sermão de Acção de Graças pelo nascimento do príncipe D. João, filho de D. Pedro II e da sua segunda esposa, D. Maria Sofia Isabel de Neuburg, que de facto já tinha falecido na data do sermão, 16 de Dezembro de 1688. Não chegou a pregar o que escreveu para o nascimento do infante D. António em 1695 nem o que ditou para o nascimento da infanta Teresa Francisca Josefa, no ano em que faleceu. Também escreveu um texto, incluído na edição dos Sermões (t. XV), para consolação da rainha pela morte do mesmo príncipe D. João, com apenas um mês de idade. Vários sermões da série Maria Rosa Mística (do Rosário), redigidos em cumprimento de uma promessa feita durante uma das travessias oceânicas, assim como os da série sobre São Francisco Xavier foram escritos na Bahia após 1681, mas de facto nunca chegaram a ser pregados. Para além das funções que exerceu como Visitador da Companhia, passou grande parte do seu tempo a preparar a edição dos Sermões, que organizou até ao volume XII e a cuidar da sua volumosa correspondência, sem nunca desistir de defender os seus ideais e as causas que achava justas.

O primeiro volume dos Sermões foi editado em 1679, estava ele em Portugal, após a estadia em Roma; Vieira inclui dois dos seus textos de juventude, pregados no colégio quase 50 anos antes. O último volume preparado por ele foi o XII, que saiu depois da sua morte, em 1699. Os três últimos volumes foram organizados a partir dos rascunhos que deixou; o XV foi publicado em 1748, meio século após a sua morte.

O nosso trabalho em Salvador consiste em retratar, através das imagens, o espaço físico onde Vieira cresceu, se formou, iniciou a sua actividade missionária, apurou a sua arte oratória, descobriu os meandros mais subtis da política colonial do reino e, depois de uma ausência de 40 anos, onde ele regressou para se dedicar, com muita amargura e muita revolta contra a ingratidão dos poderes do reino, ao aperfeiçoamento dos seus textos, à defesa das grandes causas que foram a razão das suas lutas e dos seus sacrifícios e aos assuntos da Companhia. Só não existe nem há vestígios da casa da Quinta do Tanque, um refúgio campestre que hoje é um bairro da cidade.

Salvador é uma cidade muito especial. Foi a primeira do Novo Mundo português, aqui se fundou o primeiro colégio onde se ensinou a língua, a civilização e a fé, sonho de outro jesuíta tão obstinado e genial quanto Vieira, Manuel da Nóbrega. Aqui nasceu a primeira diocese da colónia, daqui irradiou por todo o Brasil, com a fé cristã, a defesa de princípios morais e políticos que constituíram a base do que hoje é uma das maiores nações do mundo. Foram muitas as dificuldades, muitos os atropelos ao bom senso, muitos os sacrifícios e os sacrificados, mas foi nesta cidade tão africana, tão portuguesa e tão indígena que tudo começou.

Quando Vieira embarcou para Portugal, em 1641, a cidade tinha pouco mais de 90 anos mas já era um centro cultural de tão grande importância que formou a mente e traçou o destino de um dos maiores génios de todo o espaço cultural de língua portuguesa; era também um centro económico e comercial apetitoso, que despertava a cobiça das nações mais poderosas do mundo.

 

07 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
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Hoje o sol escalda, a luz dilui as cores e ofende os olhos. Está um dia muito quente, sem nuvens, sem vento, uma atmosfera pesada. O convés do CHIC, protegido pelo toldo e pelos restos da vela grande a servir de tenda, é o espaço mais confortável para se poder desfrutar de um sono tranquilo. Surpreende-nos o facto de não haver nem moscas nem mosquitos nem nenhum insecto que perturbe a nossa quietude nocturna. Às seis horas da manhã já o sol nasceu e nas instalações do segundo distrito naval, a uns 100 metros do nosso pontão, soa a alvorada, que acorda todos os navegantes. Os tripulantes dos dois veleiros holandeses que chegaram esta noite foram surpreendidos pelo ritual.

A nossa peregrinação de hoje foi às instalações do colégio fundado por Nóbrega, a primeira instituição de ensino do Brasil. Grandes nomes da intelectualidade dos primórdios da colónia passaram por aqui como alunos. O primeiro deles foi um cristão novo, Bento Teixeira, chegado aqui muito jovem, cerca de 1570, que escreveu o primeiro grande texto poético do Brasil, a Prosopopeia, um poema épico no estilo de Camões, publicado em Lisboa em 1601. Contemporâneo de Vieira, 25 anos mais novo, foi aluno do Colégio o poeta Gregório de Matos, aqui mesmo nascido, filho de português e de mulher indígena, boémio e libertino quanto baste, piedoso e místico no final da vida, a quem deram a alcunha de “boca do inferno”; também ele deambulou pela Europa e regressou a Salvador ao mesmo tempo que Vieira, com uma vida cheia de peripécias rocambolescas que o levaram ao exílio em Angola, vindo a falecer em Recife, em 1695. A sua obra só foi publicada no século XX (1923).

Um dos primeiros historiadores do Brasil foi Sebastião da Rocha Pitta, (o primeiro foi Frei Vicente do Salvador, também nascido aqui mesmo, autor da primeira História do Brasil; não foi aluno do Colégio, pois formou-se em Portugal onde ingressou na ordem franciscana, regressando depois à colónia). Rocha Pitta nasceu na Bahia em 1660, foi aluno do Colégio, poeta e historiador, autor da História da América Portuguesa.

Tomás António Gonzaga, o árcade enamorado de Marília, também foi aluno deste Colégio que teve como réplica o Colégio do Rio de Janeiro, fundado por Nóbrega e Anchieta após a expulsão dos franceses e por onde passaram outros tantos nomes dos primeiros séculos como Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga, Alvarenga Peixoto, José Basílio da Gama (O Uraguai).

Este local é um santuário cultural. No século XX passou a ser ocupado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia e todo o edifício, tanto o primitivo como os acréscimos ao longo dos séculos, estão neste momento a ser totalmente restaurados. Mais uma vez deparámos com aquilo que nos surpreendeu na Cidade Velha, em Cabo Verde: a presença bem visível da intervenção espanhola num dos mais emblemáticos espaços da cultura portuguesa. Sabendo o que estamos aqui a fazer, também foram eles os primeiros a interessar-se pelo nosso trabalho. Bem dizia Vieira, magoado com a indiferença e a ingratidão do reino, que não se temia de Castela, mas sim de outra canalha. Intuição de profeta!

 

09 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
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A boa surpresa do dia de ontem, no encontro que tivemos com a presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, a Dra Consuelo Pondé de Sena, foi sabermos que afinal a casa da Quinta do Tanque, onde o padre António Vieira passou a maior parte dos últimos anos da sua vida, muitas vezes amargurado e revoltado, não só está de pé como restaurada e recheada com um acervo muito completo sobre o mais célebre personagem que a habitou. Logo na primeira carta que de lá enviou, a 23 de Maio de 1682, ele descreve a saudade que tem de um tão amado Reino, posto que para mim tão ingrato (III, 463). Por várias vezes ele fala do deserto onde se encontra, como num exílio, uma antecâmara da morte, depois de ter sido excluído e excomungado do reino (III, 491), neste meu ermo entre maiores árvores e bosque que os que V. Ex.a (o duque de Cadaval) chama moitas de Salvaterra (III, 487).

Nesse mesmo ano, estudantes e gente do povo da Universidade de Coimbra queimavam-no em efígie, festejando o restabelecimento das actividades do tribunal da Inquisição e dos Autos da Fé, que tinham sido suspensas graças à intervenção de Vieira em Roma junto do Papa, enquanto os estudantes da Universidade do México lhe prestavam homenagem pelas suas ousadas ideias. Ele comentou: Não merecia António Vieira aos Portugueses, depois de ter padecido tanto por amor da sua pátria e arriscado tantas vezes a vida por ela, que lhe antecipassem as cinzas e lhe fizessem tão honradas exéquias (III,465). Assim se confirma um ditado popular: ninguém é profeta na sua terra.

Tivemos a visita a bordo de um cineasta de Salvador, que festejava os seus alegres 85 anos e que ainda tem um grande objectivo na sua vida: realizar um filme sobre D. João VI e a sua época. Rex Schindler é brasileiro há duas gerações e apaixonado por história. A memória prega-lhe por vezes algumas partidas confundindo certas datas e nomes, mal engavetadas no disco cinzento, mas o discurso é fluente e apaixonado. No início de 2008 festejam-se os 200 anos da chegada de D. João VI a Salvador. A família real saiu de Portugal a 29 de Novembro de 1807, escapando à invasão das tropas francesas de Napoleão e chegou aqui após 54 dias de mar, a 22 de Janeiro de 1808. Não era esperada, foi uma surpresa. Durante a sua escala foi assinado o decreto de abertura dos portos do Brasil aos navios das nações amigas; a 29 de Janeiro foi criada a Escola Médico-Cirúrgica, na verdade a primeira faculdade de medicina do Brasil, nas instalações do antigo colégio dos Jesuítas; passou também a ser permitida a instalação de manufacturas de vidro, de pólvora e de moagens de trigo. O regente (porque sua mãe, D. Maria I, demente, ainda estava viva), saiu de Salvador para o Rio de Janeiro a 26 de Fevereiro.

Os primeiros barcos da frota, desgarrados dos outros, chegaram ao Rio a 17 de Janeiro; as duas irmãs da rainha, que viajavam num desses barcos, só desembarcaram a 22 de Fevereiro, quando se soube da chegada da rainha e do regente sãos e salvos a Salvador. A família real chegou ao Rio a 7 de Março e desembarcou a 8. Este acontecimento marca o início da história do Brasil moderno, que se tornou independente em 1822. D. Pedro, a quem coube tomar a grande decisão, tinha 24 anos. O Brasil contava pouco mais de 3.500.000 habitantes, dos quais 1.100.000 eram escravos. A maior cidade ainda era Salvador com 52.000 habitantes, dos quais cerca de 22.000 eram escravos.

O Brasil conta hoje 182 milhões de habitantes, quase 52 vezes mais do que há 185 anos e a média de idade é inferior a 24 anos.

 

10 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
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Os brasileiros estão eufóricos com a visita do papa. O Brasil é uma das maiores nações católicas do mundo, mas onde se conseguiu construir um sincretismo que evidencia valores religiosos de raiz africana, alguns relentos indígenas e que concede uma grande abertura às ideologias de origem europeia que vão desde o espiritismo e as ideias positivistas até às várias organizações evangélicas e carismáticas resultantes dos movimentos da Reforma. É muito comum encontrarmos um católico que não falta à celebração da missa dominical mas que também frequenta o templo Espírita e o terreiro do Candomblé, sentindo-se muito à vontade em qualquer um destes espaços religiosos.

O sentimento religioso de brasileiro é sincero, emotivo e declarado; ele ostenta-o nos seus adornos, não perde a oportunidade de o dizer numa conversa informal, exibe-o na nomenclatura das ruas e praças da sua cidade, nos nomes das suas embarcações, na poesia e na canção. Uma tendência para o misticismo caracteriza a personalidade do cidadão brasileiro e une numa mesma identidade o quadro empresarial da metrópole paulista, o padrinho do jogo do bicho do subúrbio carioca, o fazendeiro do interior profundo do pantanal e o poeta popular do sertão nordestino. Eles falam a mesma língua, invocam os mesmos santos e orixás, afirmam os mesmos credos nos poderes ocultos e sentem no corpo o arrepio de uma fé entranhada como poeira vermelha e poderosa como o sol do meio-dia.

Salvador é a cidade das 300 igrejas, onde não há santo que não tenha nicho nem orixá que não tenha sombra, comida e cheiro. A baía que lhe dá frescura chama-se de Todos os Santos, por ter sido a 1 de Novembro que nela entrou Américo Vespucci, ao serviço do rei de Portugal. Tudo o que há no Brasil tem as suas raízes na Bahia - dizia-nos Rex Schindler – a religião, a cor da pele, a língua, a música, a beleza… sobretudo a beleza!

Hoje pela manhã ainda filmámos o Terreiro de Jesus e deslocámo-nos ao Colégio dos Jesuítas (o actual) para conversar com um dos maiores conhecedores de Vieira, o padre Carlos Bresciani – 95 anos de vida, 50 como missionário por todo o nordeste brasileiro. Regressámos ao veleiro para fritar os chicharros que comprámos a um pescador, já com a chuva a acelerar-nos os passos para um almoço tardio. Depois foi o vendaval, o dilúvio e o pandemónio que se seguiu no meio de todas as embarcações atracadas ao pontão principal. Voavam as telas de abrigo, rasgavam-se os toldos, soltavam-se as velas mal caçadas, rebentavam cabos de atracagem, despencava tudo quanto não estava solidamente atado, os mastros abanavam e os cascos adornavam como se estivessem no mar alto. A borrasca durou cerca de três horas sem sossego. Nós tínhamos tudo muito bem arrimado, apenas nos rebentou um dos esticadores do toldo de cobertura e soltou-se uma defensa do casco ao roçar violentamente com o veleiro do lado que rebentou a sua amarra. Para além de ficarmos encharcados, nada aconteceu que nos tirasse o apetite da sopa de peixe que preparamos para o jantar, quando ainda chove torrencialmente lá fora.

Todos os sinos das igrejas de Salvador tocam neste momento – são 18 horas – em homenagem ao papa Bento XVI; das torres de Nossa Senhora da Conceição da Praia, mesmo aqui pertinho de nós, a vibração poderosa do bronze sobrepõe-se ao estrondo da tormenta. Amanhã os sinos voltarão a tocar quando a Todos os Santos desta Bahia se juntar mais um, São Frei Galvão, o primeiro santo brasileiro. No aconchego do salão, cada um cuida de secar os seus trapos e deixa desabar o céu lá fora; eu sintonizo Rádio Bandeirantes e escrevo este Diário.


12 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

Eu nunca vi uma coisa assim! Não me considero um grande marinheiro nem um peregrino fiel dos oceanos, mas foram muitas as travessias e muitas as borrascas que tive que negociar nos pedaços da minha vida de navegador e outros tantos os sustos ao sabor das marés. Sempre cheguei a um ancoradouro, a um cais, onde renovei contrato com a vida. O mar batia nos paredões de protecção do porto e a espuma, sacudida pelo vento, lavava as escunas ancoradas entre o forte e o pontão do Centro Náutico. O vento arrepiava a água da vazante, criando um véu de névoa fina, um espectáculo feérico da natureza em confusão, um banzé assustador, coisas já vistas por outras latitudes. Eram umas seis e meia da manhã, à hora do pão quente.

Do meio da névoa surgiu a silhueta de um veleiro negociando os vagalhões, a vela grande amainada, um pedacinho de genoa a estabilizar o rumo, em cata da segurança, aproado à entrada do porto. Por detrás dele levantou-se uma massa de água impressionante que envolveu o casco, o levantou e empurrou, fazendo-o deslizar como uma prancha de surf. A proa enfiou na depressão, a ré levantou-se por cima da crista e todo o casco rodopiou, deitando-se de lado, o mastro completamente imergido, a quilha no ar e o casco dando uma volta completa sobre ele mesmo, isto a escassos 500 metros da entrada do porto, dentro da baía. No pontão do Centro Náutico os navegantes que madrugaram para reforçar as amarras e as defensas das embarcações, olharam-se com ansiedade, suspensos pelo desfecho; as previsões meteorológicas eram muito ruins para este fim de semana na Bahia.

Meia hora depois o veleiro de 11 metros ancorava dentro dos paredões e o contacto via VHF garantiu que os três tripulantes escoceses estavam bem e nada de grave tinha acontecido para além de um grande susto e muita água salgada dentro do casco, a ser evacuada. Todos quantos navegavam à vela por estas latitudes enfiaram-se na baía, procurando abrigo nas zonas protegidas, porque o mar está por demais complicado para se navegar com segurança. O pontão está lotado, não há uma única vaga disponível, apenas espaço para fundear. Naufragaram dois barcos de pesca, não há peixe fresco na lota improvisada, porque nenhuma canoa ousa sair da “praia”. Chama-se uma “frente fria” este vendaval que vem do sul, com trovoada, chuva e baixas temperaturas. A protecção civil está em estado de alerta por todo o estado que já enfrenta problemas de inundações e desmoronamentos de morros nas zonas mais desprotegidas. Está frio, está mau tempo na Bahia.

Ainda mais perto de nós do que a basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia está uma igrejinha discreta e modesta mas muito frequentada. É conhecida como a Capela do Corpo Santo e venera-se nela uma imagem muito antiga, de São José de Botas. A história começa com um galeão que rumava para a Bahia em 1711, quando foi surpreendido por uma violenta tempestade. O seu capitão prometeu erigir uma igreja em honra do santo do seu nome: ele chamava-se Pedro Gonçalves e, como era homem rico e de poder, cumpriu a promessa na cidade de Salvador. A 19 de Março de 1717 aconteceu coisa ruim na cidade. Um texto da época conta assim: a ventania, em impetuosíssimas lufadas ameaçava derrubar o casario; do céu escurentado, torvo, parecendo querer-se despedaçar em nunca ouvidos ribombos de trovão, e lucilando em incessantes e intensíssimos relâmpagos, desatara-se diluvial aguaceiro. Ao mesmo tempo, o mar enfurecido investia contra o litoral da cidade como se possuíra o intento de destruí-lo.

Foi então que os habitantes da cidade baixa se recolheram naquele templo e suplicaram a intervenção de São José para tão grave situação, iniciando uma procissão que conduziu a sua imagem até à Sé Catedral, na cidade alta. Quando regressaram com a imagem à capela da praia a tempestade tinha amainado. E é por isso que desde então, todos os anos, se realiza a 19 de Março, dia de São José, a procissão do Voto de Graças, dedicada a São José de Botas, na igrejinha de São Pedro Gonçalves, que tem na fachada uma imagem de santo vestida com o hábito dos pregadores, mas que é conhecida como a Capela do Corpo Santo.
Mau tempo em Salvador da Bahia!

 

13 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

A Bahia não foi apenas o berço cultural do Brasil, onde tudo começou, desde aquele encontro entre os marinheiros de Cabral e os autóctones das praias hoje denominadas Costa do Descobrimento. Foi um encontro de paixões e de mortes, de ambições e deslumbramentos, num mundo de vidas novas, um Novo Mundo. Na construção deste novo espaço a Bahia não só criou como acompanhou os grandes movimentos artísticos que se sucederam ao longo dos diversos períodos de criatividade literária e ideológica. O centro histórico da capital foi reconhecido pela UNESCO, em 1985, como património da Humanidade.

A figura que ocupa mais espaço na cidade de Salvador é certamente Castro Alves (1847-1871). Tem nome de bairro, de praça, de rua, de teatro, de academia, de colégio, de faculdade, de padaria, de restaurante… Foi poeta do grupo denominado “condoreiro”, pela sublime altura dos seus ideais, defendeu a abolição da escravatura e foi um republicano convicto. Publicou Espumas Flutuantes, A Cachoeira de Paulo Afonso, Os Escravos. Mais conhecido ainda é Jorge Amado (1912-2001) por muitos dos seus romances e novelas televisivas. Quem não ouviu falar de Jubiabá, Capitães da Areia, Gabriela Cravo e Canela, Tieta do Agreste… Tem nome de praça, tem casa-museu, tem fundação e um carinho muito grande do povo bahiano que o lê e o admira, cantado pelos repentistas, celebrado pelos poetas de cordel, recordado por todos os da sua geração. Foi jornalista e político, conheceu o exílio, e foi sobretudo um escritor que retratou como ninguém o homem nordestino num estilo simples e sem pretensões literárias, o que não o impediu de ser membro da Academia Brasileira de Letras. Menos conhecido é Junqueira Freire (1632-1855), um romântico obcecado pela morte, agarrado ao classicismo literário de Bocage e de Herculano, num estilo tumultuoso e emocional. A sua temática da morte inspirou Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), e o seu saudosismo reencontra-se em Teixeira de Pascoaes (1879-1952). Soares de Passos (1826-1860) inspirou-se num dos seus textos sobre a morte para o seu poema Noivado do Sepulcro. Como Castro Alves, viveu pouco mais de 20 anos, vidas intensamente atribuladas que deixaram e ainda despertam compaixão e saudade.

Rui Barbosa (1849-1923) é sem dúvida o mais célebre dos “retirantes” bahianos, emigrados da capital do estado para a capital do país, onde empresta ainda mais vezes o seu nome do que Castro Alves em Salvador. Foi jurista eminente, escritor e político, abolicionista convicto e empenhado, redigiu o projecto da primeira constituição republicana brasileira, conheceu também o exílio que o levou até Portugal, foi autor de dezenas de publicações, duas vezes candidato à presidência da república, membro fundador, em 1896, da Academia Brasileira de Letras. Nos tempos actuais, João Ubaldo Ribeiro (n. em 1941), jornalista e escritor, é a figura mais eminente da intelectualidade bahiana. O Sorriso do Lagarto é a sua obra mais conhecida.

No domínio artístico, quem não conhece Caetano Veloso e a irmãzinha Maria Bethânia? E Gal Costa, que também é bahiana? E Ivette Sangallo, Daniela Mercury, e o bardo-ministro Gilberto Gil? Esqueço muitos outros a quem peço desculpa pela memória atribulada.

Há um bahiano que não posso esquecer. Chama-se Anísio Spínola Teixeira (1900-1971), foi aluno da Colégio padre António Vieira, onde teve como mestres dois eminentes portugueses, o padre Luiz Gonzaga Cabral e o meu conterrâneo padre Manuel Rebimbas (de uma família que serviu a igreja católica com vários sacerdotes, entre os quais D. Júlio Rebimbas, pároco de Ílhavo e bispo do Porto). O padre Cabral, natural do Porto, expulso de Portugal pelos republicanos em 1910, foi quem fez o discurso de recepção aos aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral quando chegaram a Salvador em 1922. Anísio Teixeira foi o grande defensor e organizador do ensino público no Brasil, o expoente máximo de uma filosofia da educação que marcou o movimento educativo do Brasil em toda a fabulosa e inesquecível década de 60. Lembro-me com muita saudade dos encontros que tive com ele entre 1964 e 1968 no Rio de Janeiro, na companhia de Emanuel Carneiro Leão, Werneck Sodré e do padre Bastos de Ávila, no apartamento do Sr. Saraiva, o paraplégico mais erudito do Brasil, uma zona franca da intervenção dos militares revolucionários, onde discutíamos e nos emocionávamos com as nossas utopias desmedidas. Ao lado de Paulo Feire e de Darcy Ribeiro ele é uma das maiores referências do grande esforço brasileiro no desafio da educação das massas.

Um dia, a porta do elevador do 12º andar abriu-se e Anísio não hesitou, avançou com o seu passo decidido; o seus óculos grandes e redondos não lhe permitiam ver bem na penumbra. O elevador não estava lá, tinha parado no andar de cima, nesse fim de tarde de 11 de Março de 1971; a porta abrira-se acidentalmente para um enorme espaço vazio, onde o seu corpo se despedaçou.
Muitas saudades desse tempo emocionante, um tempo de paixões e de pelejas que deixaram feridas que nunca mais cicatrizaram.

 

14 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
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O mau tempo passou, ontem e hoje foram dias de reparar os estragos. Entre as chegadas ao abrigo dos paredões está um catamarã português proveniente de Angra dos Reis, a sul do Rio de Janeiro, que tem como skiper um velho conhecido das andanças por esse mundo, o João Lúcio, irmão do José Inácio, que comandaram a caravela Boa Esperança e que comandam agora a sua réplica Vera Cruz, da Aporvela. Temo-nos encontrado sempre sem marcarmos “rendez-vous” por esse mundo onde os marinheiros de circunstância refazem os seus contratos com a vida. Simplesmente aconteceu mais uma vez, desejando que não seja a última. Reparados os estragos, os três tripulantes do catamarã devem seguir para Portugal via Açores.A outra chegada é a do veleiro canadiano do Québec Pierrre de Lune, que navega há dois anos sem interrupção. É intenção do casal de professores que resolveu, depois da reforma, trocar os seus bens imóveis por um veleiro afim de descobrir o mundo, deixar por aqui o barco de 11 metros, passar o verão no Québec e continuar a viagem a partir de Outubro, sem destino fixo, ao ritmo das descobertas e dos encontros. Fomos colegas há mais de 20 anos, nunca mais nos vimos nem soubemos da vida de cada qual, e de repente encontramo-nos no mesmo pontão, em Salvador da Bahia e tendo o mesmo problema para resolver: uma vela grande destruída, precisando de um patrocínio para a substituir.

Tem ainda um casal inglês num veleiro de 10 metros, sendo que o homem é cego. Chegaram ao Rio de Janeiro em proveniência de Cape Town e seguem ao longo da costa brasileira até Belém, para daí rumarem para as Bermudas, Açores e Portugal. O mar é tão grande que cabe lá toda a espécie de gente; só não há espaço para quem carece de imaginação e para quem acha que a vida é feita de coisas já vistas.

 

15 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
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Charles Darwin fez escala em Salvador da Bahia de 29 de Fevereiro a 18 de Março de 1832, há 175 anos, a bordo do Beagle, um brigue (veleiro de dois mastros com velas quadradas) comandado por um oficial da Royal Navy, de nome Fitz Roy. O capitão era um homem muito religioso e durante a longa viagem exploratória travou animadas discussões com o naturalista, apaixonado pela história natural e pela origem e diversificação da vida sob todas as suas formas. A cidade e os habitantes de Salvador parecem tê-lo deixado indiferente, contrariamente ao que aconteceu em Cabo Verde, mas as florestas luxuriantes, as formações rochosas da zona da baía, a variedade de insectos e a fauna marítima e sobretudo uma tempestade tropical mereceram a sua atenção. Em especial interessou-se por um peixe, o Diodon Anthennatus de seu nome científico. Os pescadores chamam-lhe “baiacú”, um peixe saboroso mas venenoso, que só quem sabe extrair-lhe a glândula que segrega o veneno pode cozinhá-lo sem perigo de morte. O bicho consegue engolir ar e transformar-se num balão, eriçando espinhos por todo o corpo e escapando assim aos predadores; passado o perigo expele o ar e volta a nadar como qualquer peixe. Se é engolido por um tubarão consegue matá-lo envenenando-o e em seguida sai do corpo do predador fazendo simplesmente um buraco através do corpo.

Todas as manhãs de bom tempo a “praia” da cidade baixa transforma-se em lota onde os pescadores da pesca artesanal vendem o resultado de uma noite de trabalho. Chegam em canoas feitas de troncos de árvore, como as ancestrais embarcações indígenas, em pequenas barcas de fabrico caseiro, movendo-se à vela e a remos, dois a três homens por embarcação. Com algumas caixas de esferovite cobertas com plástico, uns quilos de gelo, uma balança ferrugenta, uma mesa feita com um pedaço de madeira velha, está montada a lota para os clientes madrugadores que chegam da cidade, dos restaurantes, dos botequins, e ainda para os revendedores que deambulam pela cidade com os seus carrinhos de rodas de patins. Alguns deles assentaram arraial por detrás de um posto de gasolina onde também funciona um talho e dão-se ao luxo de aceitar pagamentos por cartão Visa, serviço prestado pela gasolineira, claro.

Do badejo ao chicharro, da moreia à sardinha, passando por todas as dimensões de camarão e de lagosta, uma coisa é certa: não há peixe mais fresco e mais saboroso em toda a cidade de Salvador. Muito dele chega vivo, a nadar na água do fundo da canoa. São mais de meia centena as embarcações da frota da “praia”, a mesma do tempo de Tomé de Souza e de Nóbrega, entre a igreja da Conceição e a capela do Corpo Santo, hoje reduzida a um minúsculo areal nojento e poluído onde as ratazanas disputam aos cães esfomeados e aos gatos predadores as tripas dos peixes. Os homens apregoam o peixe, bebem cachaça e discutem futebol.

16 de Maio de 2007, Salvador da Bahia
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Despedimo-nos em Salvador de Charles Darwin. A viagem dele, que até aqui seguiu o mesmo rumo e escalou nos mesmos portos que nós, continuou para sul ao longo da costa brasileira até ao Rio del Plata, depois pela costa da Argentina até ao estreito de Magalhães, pelo qual acedeu ao Pacífico, remontando a costa. O objectivo da expedição era de completar a observação da Patagónia e da Terra do Fogo, iniciada pelo Capitão King entre 1826 e 1830 – de observar os litorais do Chile, do Peru e de algumas ilhas do Pacífico – e de completar uma série de medidas cronométricas pelo mundo todo. Darwin não imaginava, ao aproximar-se dos espaços austrais e do oceano Pacífico, onde a sua expedição se prolongou por dois anos, que o resultado mais espectacular daquela viagem não seria o da observação e o das medições, mas sim o de uma teoria inovadora sobre a origem e a diversificação das espécies que revolucionou a história natural e ainda hoje apaixona e divide gente de todos os sectores do conhecimento humano.

Muitos foram os viajantes que se deixaram fascinar pelo Brasil, pela dimensão do seu território, pela variedade e riqueza ecológica, pela beleza das suas paisagens, pela grandiosidade dos rios, pelas características das suas gentes. É muito fácil chegar ao Brasil, difícil é partir; mesmo calculando os muitos riscos que se correm nas grandes metrópoles devido à violência urbana, há uma profunda sedução que encanta o forasteiro, feita de beleza e perversidade e que fascina o mais irredutível dos calculistas. Assim aconteceu com os holandeses que responderam ao apelo de João Maurício de Nassau (Macgraf e Piso de Leyde), com Pierre de la Condamine, que desceu o rio Amazonas, com Augusto de Saint-Hillaire e o príncipe De Wied que viajaram pelo centro e sul do Brasil, com Jean-Baptiste Debray e Rugendas, com o médico suíço Louis Agassiz e muitos outros que contribuíram para difundir uma imagem empolgante do Brasil nos séculos passados. A imagem romântica do “bom selvagem” de Rousseau foi sugerida pelos textos sobre a bondade e a mansidão dos indígenas brasileiros, publicados na Europa pelos missionários e pelos primeiros viajantes. O encanto do Brasil originou histórias de paixões desmedidas.

Hoje é Quarta-feira, dia de Iansã, a divindade da força e do poder no ritual do Candomblé, identificada como Santa Bárbara, no sincretismo afro-cristão. Veste-se de vermelho, de coral e marron, domina os ventos e as tempestades. O Candomblé da Bahia, (como a Umbanda do Rio de Janeiro) não é uma transposição da religiosidade africana para o Novo Mundo; á antes uma criação tipicamente brasileira, baseada em memórias remotas do panteísmo africano, enfeitada e enriquecida com a exuberância e a criatividade própria à alegria dos trópicos. Yemanjá, Oxossi, Oxalá, Ogum, Nanã, Oxum, Eroko, Exu, Omolu, Iansã, Xangô, Obá, Oxumaré, os gémeos Ibejís… não são divindades africanas remanescentes na memória dos descendentes dos escravos. Oxumaré, por exemplo, é uma divindade que vive seis meses como homem e seis meses como mulher; o seu símbolo é a serpente, as suas cores as do arco-íris, o ritmo da sua dança é batido ao som do atabaque. A figura de Tirésias, na tragédia grega, tem características e significados similares. Estas são criações brasileiras, fazem parte do património memorial de um povo que soube assimilar valores de muitas e variadas proveniências, indígenas e exóticas, fazendo deles elementos característicos e inconfundíveis da sua identidade.


17 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
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Pelo ano do Senhor de 1553 o P.e Manuel da Nóbrega tinha deixado Salvador e embrenhara-se pelos matagais de Piratininga, com ideias extravagantes de invadir todo aquele sertão até ao Paraguai, para onde corria o rio Tietê, ideias que nem o segundo governador geral do Brasil, Duarte da Costa, nem o primeiro bispo da colónia, D. Pedro Fernandes Sardinha, aprovavam. Desentendido com ambos, o fogoso jesuíta preferira afastar-se da cidade que ajudara a fundar, centro de todas as decisões da colónia, e deixar crescer muito mato entre ele e as autoridades. Andava acompanhado por um conhecedor da terra, um ex-soldado que tinha assentado praça na Companhia de Jesus como irmão, para expiar os seus pecados, um tal António Rodrigues. Levava também 4 meninos treinados em cantigas religiosas e que sabiam de cor pedaços do catecismo, e mais um guia conhecedor da região e respeitado por ser filho do João Ramalho, um reinol de Vouzela, pai de uma numerosíssima prole que muito contribuiu para mudar a cor da pele daquela gente, entre a praia e o planalto. De crucifixo em punho invadiam as tabas e com discurso contundente guiavam os índios para a salvação. A gaguez do grande missionário nessas alturas, como nas outras em que se transformou em combatente, não era obstáculo ao sucesso, tanta era a fé, tão poderosa era a utopia.

Quando irromperam numa das tabas da aldeia de Maniçoba (hoje Itú), os índios Tupis preparavam um prisioneiro para o sacrifício. O homem estava bem cuidado, gordo, perfumado, enfeitado. Tinha sido capturado numa caçada uns anos atrás e desde então foi alvo de todos os cuidados, bem guardado e bem cevado. Emprenhou quantidade de mulheres, garantindo assim na aldeia um novo poder genético, para evitar os males da consanguinidade e garantir à tribo as qualidades e a força da tribo dele. Objectivos atingidos, procedia-se à última fase do ritual, após três dias de festa: segurado pela “mussurana”, a corda ritual, era abatido com uma poderosa mocada na cabeça com a “ibirapema”, logo seguida de sangramento, quando os braseiros para o churrasco já estavam prontos. Bebia-se-lhe o sangue, dividia-se a carne assada por toda a gente e horas depois só restavam os ossos, com os quais se fabricavam flautas. Mas os índios consideravam que bastava beber-lhe o sangue e comer-lhe a carne para assimilar toda a força vital e adquirir todo o poder da sua tribo.

O que se ia passar não era novidade para Nóbrega e os seus companheiros, conhecedores dos hábitos ancestrais dos “selvagens”; a ansiedade do missionário prendia-se com o facto de, não podendo evitar tão trágico destino, pelo menos se o baptizasse encaminhá-lo-ía para o céu e contava mais um crédito no seu currículo. O missionário, que muitas vezes exibiu os seus dotes de estratega, tramou um cenário para esborrifar a cabeça da vítima com água enquanto pronunciava bem alto as palavras rituais. Quanto aos que se preparavam para o festim, ficaram alvoroçados com medo dos ritos dos forasteiros, que podiam afectar o gosto da comida. E o jesuíta pressionou quanto pôde: no momento do sacrifício pôs o irmão a pregar um sermão para toda a aldeia e os meninos a cantar. O filho do Ramalho terá ido caçar qualquer bicho para não desperdiçar o braseiro.

Tanto pregaram os padres, tanto pressionaram os colonos e os poderes, que a festa da carne acabou. Também acabaram com a língua, as tabas e as caçadas – só restam vestígios, tão frágeis que se apagam com a primeira chuva. De Piratininga e de Maniçoba só ficaram os nomes e a memória. É triste assistir à morte de um homem, ao incêndio de uma aldeia, ao desaparecimento de uma cultura. Nada nem ninguém nasce por ser bom, nem morre por ser mau, mas simplesmente porque tudo, as estrelas, as pedras, os bichos e os homens, tudo nasce e tudo morre. É o destino; ou simplesmente a força do Big Bang!

Na terra da língua tupi e das tabas sagradas vivem hoje 180 milhões de gente, de todas as raças, de todas as cores, de todas as forças e de todas as paixões da terra. Pelas ruas das grandes cidades, erguidas por cima das cinzas das tabas esquecidas, vagueiam os corpos efémeros animados pelo poder vital de todos os sangues da humanidade. Eles falam, cantam, choram e rezam na língua que lhes ensinou o missionário gago, obstinado em estragar a festa dos Tupis de Maniçoba há 454 anos!

 

18 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
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Os franceses foram os primeiros que cobiçaram as costas do Brasil, onde queriam implantar a França Antárctica. Frequentaram durante muitos anos a Baía de Todos os Santos; até há quem diga que o célebre Caramuru, que desempenhou um papel importante no momento da chegada do primeiro governador, terá abordado estas terras numa nau francesa. Nóbrega armou-se em capitão de uma milícia de índios para ajudar na conquista do Rio de Janeiro. Oito anos depois de terem sido expulsos do Rio de Janeiro, os franceses foram também expulsos da zona de Cabo Frio, em 1575. Tinham assentado arraiais nesta terra paradisíaca para acarretar para França todo o pau-brasil que podiam carregar nos seus navios, na barra da paradisíaca lagoa de Araruama.Durante muitos anos criaram laços de amizade com os índios Tupinambás que desconfiaram dos novos senhores do território e se mostraram agressivos para com os portugueses. O confronto foi inevitável e a refrega provocou 20.000 mortos. Os sobreviventes dispersaram-se pela Serra do Mar e a região ficou deserta. Os portugueses carregaram o que puderam de pau-brasil, escravos e papagaios, mas por pouco tempo, porque, com a monarquia espanhola sentada no trono de Portugal, os inimigos da Espanha voltaram a Araruama, por causa do pau-brasil. A região tornou-se uma das mais agitadas da costa brasileira até ao tempo da Restauração, quando os jesuítas e os beneditinos aí se tornaram grandes latifundiários, e reagruparam à volta dos conventos e dos engenhos uma mão de obra de várias tribos indígenas e uma população desconfiada. Aquelas paragens tinham sido antes visitadas por Américo Vespucci, que lá assentou arraial com um quarteirão de colonos em 1503, por ordem do rei. Ainda lá está o poço por eles cavado.

Depois veio o tempo das salinas, chegaram também os franciscanos, e entretanto sumiu por completo o pau-brasil. Hoje, mesmo sem as florestas, estas terras continuam ainda a ser um paraíso ecológico, um refúgio natural único no mundo. No alto do morro da Guia existe uma pequena capela, sobranceira ao antigo convento franciscano de Santa Maria dos Anjos, obra do final do século XVII. Junto à capela tem uma pedra. Foi sentado nessa pedra que um velho chefe índio Tupinambá terá assistido, chorando, ao massacre dos seus.
O poeta indianista Gonçalves Dias chorou assim:
Ó guerreiros da Taba sagrada
Ó guerreiros da Tribo Tupi
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.
(…)
Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
Ó desgraça, ó ruína, ó Tupá
(…)
Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se.
Vendo os vossos quão poucos serão.

O sociólogo Gilberto Freyre escreveu: quase não há edifício nobre em Portugal que não tenha um pedaço de mata virgem do Brasil resistindo com uma dureza de ferro à decadência que vem roendo a velha civilização portuguesa de conventos e palácios de rei. Foi esta velha civilização, que há muito acarreta diagnósticos de decadência, que se impôs e teima em viver. Nas terras do pau-brasil, o sangue dos massacrados corre nas veias de quase todos os corpos que se espreguiçam na farinha branca das praias, como corre o sangue dos negros arrancados de África e o de todos os demais forasteiros que por ali saciaram fomes e paixões. Os moinhos de vento das salinas de Araruama, os coqueiros de Saquarema, as orquídeas selvagens da restinga enfeitam hoje a terra despojada da mata atlântica, que desde milénios tinha sido o seu tesouro, o fruto da sua seiva. O tempo não volta mais, não vale a pena sentar-se na pedra do morro da Guia e partilhar com o chefe índio os lamentos da saudade, chorando os guerreiros mortos, os escravos espoliados, a madeira roubada, a terra violada…

Podemos partilhar a saudade, entre todos os falantes da língua que se impôs como uma das maiores do mundo, veículo de muitas culturas, identidade comum. Pelo caminho houve muito sangue desperdiçado, muitos desastres ecológicos, muitos equívocos irreparáveis. Muitas pedras no meio do caminho. De todos esses desastres restam algures vestígios, uns indeléveis outros violentos, pelas veredas tortuosas que trouxeram até nós o poder de todas as paixões e a força de todas as utopias que se afeiçoaram ao nosso destino. Com a língua partilhamos a saudade, com a saudade partilhamos o destino e com o destino partilhamos a utopia. Dos picos da serra do mar, estendemos o olhar pelas colinas dos Goitacás, pelo espelho das águas de Saquarema, pelas curvas sensuais da baía de Guanabara; do topo dos edifícios de Salvador o olhar espraia-se das praias de Itapuã até às colinas de Camamu e imaginamos fantasmas que nos interrogam e nos desafiam.

Tem uma moça linda passeando pelas dunas de Itapuã, seus cabelos negros, seus olhos grandes, seus lábios sensuais. Já não sabe a que tribo pertence nem o nome dos deuses dos seus antepassados. Talvez saiba que as universidades brasileiras lhe reservam 1% das vagas, se quiser ingressar no ensino superior. Ela não chora, nem tem no seu rosto nenhum sinal de tristeza; pela areia branca, tão fina que a envolve num véu de seda, o seu corpo flutua como um arco-íris, que se desmancha e se confunde na luz.


19 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
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Há quase três semanas que estamos em Salvador; faltam-nos meios para fazermos melhor e em menos tempo o nosso trabalho, mas como dizia o poeta, “a vida é abundância e o tempo é criança”. Os últimos dias cresceram em intensidade de produção e a equipa começa a afeiçoar-se a estes espaços tropicais cheios de novidades e de emoções. O nosso quotidiano é feito de muitos gestos banais e de algumas surpresas. Todos os dias, às seis da manhã, eu sou dos primeiros a provar o pão quente da padaria Cayrú, propriedade de seu Pepe, puro galego de Pontevedra. Quase sempre tenho que esperar pela primeira fornada, o que dá lugar a uma conversa animada com café com leite, onde se misturam as saudades e as histórias de uma vida de mais de 50 anos a fazer pão, na primeira porta ao lado do mais que centenário elevador Lacerda. Quando se abrem as portas do elevador, que transporta os passageiros da cidade baixa para a cidade alta, uma enxurrada de gente precipita-se na padaria, clientes de todas as manhãs, a saciar a primeira fome do dia.

Entre a padaria e o Centro Náutico tem a lota improvisada onde reina um mestiço escultural, senhor absoluto do produto das canoas e das barcas da praia, que nos garante o melhor peixe do dia e ainda nos galanteia de vez em quando com duas mãos cheias de camarão ou uma lagosta viva, porque “os portugas do veleiro merecem, sim siô, são meus irmãos, pô’a”. Neto de português e de negra, filho de índia e de mulato, já foi oficial de marinha e estivador, taxista e guarda-costas. Hoje, Severino é senhor do peixe da praia e exímio repentista quando a cachaça inspira. Vê todos os dias o sol nascer e todas as crianças vadias da baixada lhe chamam pai.

Tem ainda a dona do açougue improvisado nas traseiras da gasolineira, filha de emigrantes alemães; imponente e severa, nunca olha nem fala para os clientes, mas nada lhe escapa, nem um naco de febra colado ao facalhão do açougueiro. Tem um rottweiler sentado ao seu lado, na caixa protegida onde recebe o dinheiro, a cabeça apoiada nas suas coxas, um olho aberto e outro fechado, imóvel, gordo e inexpressivo como a dona. “Capricha nessa alcatra que é pró comandante!”, mas nem a alcatra nem a mais ossuda das costeletas sai das mãos do homem sem ele receber em troca um pedaço de papel de caderno de escola com o montante pago, papel que ele espeta num arame pendurado na parede, antes de entregar a carne.

Por detrás da capela do Corpo Santo há o minimercado de um outro galego, apinhado de tudo o que é de necessidade e de sobra para o dia-a-dia, como a melhor cachaça, os melhores legumes das roças da periferia, azeite português, vinho do Rio Grande do Sul, até bacalhau tem, mas só por encomenda e pago adiantado, sem data exacta de entrega. Seu Antônio está sentado ao lado do caixa, controla cada real que por lá circula e tranca à medida num cofre blindado, desmedido para o tamanho do comércio, provavelmente relíquia de uma agência bancária desmantelada. Nunca diz que não tem o que pedimos, sempre responde: “vá descansado que eu mando entregar pelo estafeta” – e manda mesmo, até corda de berimbau. Faltava sabonete ontem à tarde: antes do escuro o moleque veio a correr entregar a mercadoria, a tempo do banho.

Na praça do Mercado Modelo, ao lado da estátua sempre apinhada de pombas do visconde de Cayrú, estão dezenas de barracas que oferecem aos turistas artesanato, música popular, bugigangas, curiosidades. Numa delas reina seu Paraíba da Viola, que vende folhetos de Cordel, desde a mais recente criação dos poetas das ruas de Salvador, naturalmente a dele, até aos clássicos do sertão e aos mais queridos do povo, Cuíca de Santo Amaro, Leandro Gomes de Barros, Azulão, Patativa do Assaré… Cada compra de um folheto por um real dá direito a um repente tão espontâneo quanto maior for a imaginação e a originalidade de quem lança o mote.

Estes são alguns dos nossos incontáveis vizinhos, na baixa de Salvador da Bahia.

 

20 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

O CHIC é visto como um veleiro muito especial pelos peregrinos dos oceanos que fazem escala em Salvador. São actualmente forasteiros de 14 países diferentes, lado a lado ao longo do pontão flutuante com uma centena de metros, criando uma comunidade provisória onde se partilham experiências de ventos e maresias, informações sobre portos de abrigo, projectos ambiciosos e sobretudo o grande objectivo de todos os navegantes: como chegar vivo ao próximo porto. O último veleiro a chegar, que se encostou a nós, foi o de uma família belga, casal e quatro filhos, procedentes do Senegal. Só que vinha a bordo um gato: preto, enorme, experiente, matuto malvado e provocador. Ainda a embarcação manobrava para atracar, Cuécué e o felino olharam-se olhos nos olhos, teceram estratégias e decidiram investir. O resultado foi um cão e um gato a nadar nas águas da marina, a atrapalhar a manobra, tentando desesperadamente agarrar-se aos cabos e às bóias, à procura de espaço para sacudirem o pêlo ao seco. Assumida a derrota, marcadas as posições e os limites territoriais, cada qual apenas provoca sem investir.

O movimento que roda à volta do CHIC faz a diferença: a TV, os visitantes, as discussões animadas no cockpit e no salão, levam os outros a perguntar: mas afinal o que é que vocês estão aqui a fazer? É deste modo que os nossos colegas do mar estão informados sobre o homem cujo roteiro nos inspira. A tripulação brasileira de um veleiro inglês, o maior dos que aqui se encontram, de 22 metros, em viagem da Antárctica para Trinidad, decidiu organizar para esta noite uma recepção, permitindo-nos explicar aos outros velejadores o nosso projecto. Haverá projecção de filmes e “bate-papo”. Na próxima Terça-feira, o Jaime e o Luís vão apresentar o trabalho deles no DIMAS (Directoria de Artes Visuais e Multimeios), da secretaria da cultura do governo do Estado da Bahia e no mesmo dia vamos ser recebidos pelo director da Televisão Educativa, órgão do governo federal.

Entre os muitos convidados a bordo, autoridades consulares, professores, membros da Câmara de Comércio luso-brasileira, gente do cinema e do espectáculo, esteve um muito especial: o professor Pedro Agostinho da Silva, filho de Agostinho da Silva, que teve uma ligação muito especial tanto à cidade de Salvador como à de Aveiro. Pedro recupera de uma intervenção cirúrgica e retoma as suas actividades docentes e de investigação, agora concentradas sobre o grande tema que sempre orientou as grandes linhas do seu trabalho universitário, a causa indígena. Foi há muitos anos que ele viveu entre os índios do Xingú e hoje orgulha-se de uma coisa que parece muito pequena, mas que é na realidade um ponto de referência na evolução da cidadania brasileira: há três índios, duas moças e um rapaz, frequentando por mérito e não por percentagem a Universidade Federal da Bahia. São 15.000 os índios recenseados no Estado da Bahia.

Já por ocasião da viagem comemorativa dos 500 anos do encontro dos marinheiros de Cabral com os indígenas desta costa o arquitecto Abel Travassos foi uma espécie de anjo da guarda para os veleiros da regata, em especial para a tripulação do Barconauta, que tinha largado de Portugal com um atraso de 10 dias e chegado a Salvador ao mesmo tempo que os outros, mas exausta de tanto correr. Foi durante muitos anos um dos dirigentes do Gabinete Português de Leitura (que publica a revista Quinto Império) e o nosso trabalho sobre Vieira entusiasmou-o. Foi ele quem nos veiculou fora de Salvador, ao encontro dos espaços de missão e de pregação de Vieira, de Vila de Abrantes (antigo aldeamento indígena do Espírito Santo, para onde fugiram os jesuítas dos invasores holandeses em 1624) até Acupe (onde Vieira pregou o célebre sermão de São Sebastião em 1634, com apenas 28 anos). Na sua oficina de serralharia e mecânica o nosso gerador foi submetido a uma revisão e algumas modificações para tentarmos reduzir de alguns decibéis o seu ruído.

Hoje está um dia quente e o pontão das escunas está apinhado de gente que vai procurar frescura e repouso nas praias da ilha de Itaparica. Nós também lá iremos, mas à procura de uma pequena igreja do século XVI, dedicada a São Lourenço, no município de Vera Cruz, onde se celebrou a primeira missa em língua Tupi. O primeiro bispo de Salvador, D. Pedro Sardinha, não concordava com estas inovações dos jesuítas, nem com outras de que se serviam os padres para seduzir os índios. Ironia do destino, o bispo acabou os seus dias comido pelos índios, depois de sobreviver a um naufrágio.

 

21 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

Ao longo de todo o litoral que rodeia a baía de Todos os Santos, pelo Recôncavo Bahiano, encontram-se espalhados os vestígios dos primeiros núcleos de colonização e do crescimento da colónia, a partir dos engenhos de açúcar e das aldeias indígenas. A zona onde hoje se encontra a cidade de Salvador era densamente povoada na primeira metade do século XVI; a mata atlântica e os rios garantiam a sobrevivência de numerosas aldeias, que tanto teciam alianças de paz como se guerreavam. A chegada dos primeiros estrangeiros, portugueses e franceses, complicou ainda mais o relacionamento entre elas e até finais do século a zona não foi nada pacífica. As primeiras tentativas de colonização, de Francisco Pereira Coutinho, resultaram em desastre e à chegada de Tomé de Sousa e Nóbrega (1549) apenas restavam ruínas dos primeiros assentamentos e alguns colonos que sobreviviam graças a um relacionamento amistoso mas precário com os indígenas.

Um desses privilegiados era o Caramuru, de seu verdadeiro nome Diogo Álvares Correia, que naufragou por estas bandas, conseguindo salvar-se graças a um tiro certeiro de mosquete com que abateu um pássaro, impressionando de tal maneira os indígenas Tupinambás que estes, em vez de o destinarem ao festim antropofágico, lhe ofereceram a filha do chefe como esposa. E foi assim que o Caramuru (homem de fogo) desposou Paraguaçu, dando origem a uma história lendária que frei José de Santa Rita Durão transformou num poema épico, um dos primeiros a exaltar a beleza e a nobreza dos indígenas brasileiros (publicado em Lisboa em 1781). No poema, o casal é recebido na corte francesa onde a rainha Catarina de Médicis, mãe de três reis, empresta o seu nome cristão à índia baptizada e a eleva à categoria de pessoa civilizada.

Diogo Álvares terá naufragado num dos muitos navios franceses que navegavam impunemente por estas águas em cata de pau-brasil e que tinham apoios ao longo de toda a costa, onde pretendiam criar um espaço de comércio e de liberdade, a que chamavam a França Antárctica. A baía de Guanabara era um desses locais privilegiados, onde eles ficaram até 1567; outro era São Luís do Maranhão, donde só se retiraram em 1615. Foi graças a muitos “Caramurus” que os primeiros colonos conseguiram criar laços de amizade e de paz com os indígenas, sem os quais a tentativa de colonização ter-se-ia transformado numa chacina. Quando o relacionamento entre uns e outros se complicava, o resultado era sempre desastroso para todos. Olhando para os números, o saldo geral mais parece o de uma hecatombe: os historiadores mais credíveis calculam que haveria em todo o espaço que hoje é o Estado da Bahia, entre 80 e 100.000 índígenas. Quinhentos anos depois sobram cerca de15.000, dos quais três jovens são os primeiros deles a frequentar a Universidade.

Os números falam mas não dizem tudo. Aqueles que são hoje considerados “índios”, beneficiando de um estatuto especial e usufruindo de privilégios que lhes são exclusivos, são definidos por um estatuto genético e um modo de vida ancestral. O sangue indígena corre nas veias de uma percentagem considerável de brasileiros, impossível de definir com exactidão, mas muito mais elevada do que os 50%; há quem avance acima dos 80% nos estados do Nordeste e do Norte do Brasil. São incontáveis os brasileiros que se orgulham do sangue que lhes corre nas veias, descendentes de todas as Iracemas de lábios de mel que se deixaram seduzir pelos forasteiros vindos do outro lado do mar. E foi assim, com pactos de paz e impulsos de desejo, que se criou um povo novo num mundo novo, onde a liberdade e a utopia superaram todos os medos e todas as proibições. Agostinho da Silva gostava de citar o poeta Manuel Bandeira que dizia que “o brasileiro é um português à solta”, um português dos antigos, certamente.

 

22 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

Ninguém sabe ao certo quantos eram na época da chegada dos europeus: os estudiosos propõem entre 2 e 5 milhões no território que hoje é o Brasil e onde o censo mais recente deles não vai além da casa dos 300.000. Apenas uma coisa é certa: eles são a matriz genética da nação brasileira. Ocupavam toda a costa e parte do interior, agrupados por afinidades de língua e laços amistosos, guerreando-se e fazendo as pazes ao ritmo das carências e da abundância. Tupi-guarani era uma designação geral que abrangia o maior número dentre eles, pelas semelhanças linguísticas e parâmetros de costumes. Os que se diferenciavam, geralmente por uma forma de vida mais primitiva, eram denominados Tapúias. Pelo meio havia os Tupinambás, os Goitacazes, os Aimorés, os Tapajós, Tamoios, Tupiniquins, Tremembés e muitos outros que viviam na idade da pedra, do arco e da flecha com ponta de pedra ou simplesmente de pau queimado e afiado. A primeira lei de protecção aos índios, proibindo a sua escravidão, data de 1570, o ano em que faleceu Nóbrega, o primeiro grande defensor da liberdade dos índios. Excluídos dessa protecção ficaram os Aimorés, por serem os mais selvagens e rebeldes de todos quantos povoavam as florestas. Reinava El-Rei D. Sebastião. Mas a liberdade definitiva concedida aos indígenas do Brasil data de 1758, reinava D. José e governava o marquês de Pombal. No ano seguinte os jesuítas, os mais empenhados defensores dos indígenas, foram expulsos da colónia e do reino
As primeiras mulheres brancas, muito poucas, só chegaram à colónia depois dos escravos negros e do gado bovino; podiam não ser da melhor estirpe, mas sempre eram brancas e a sul do equador não só não há pecados como também não há preconceitos. Elas destinavam-se a serem as esposas legais dos colonos desamparados, mas nem por isso carentes. Nas primeiras quatro décadas da colonização terão passado pelo Brasil mais de 80.000 europeus, dos quais cerca de metade ficaram e se instalaram, dando origem ao primeiro surto de uma descendência de mamelucos. Da união dos escravos negros com as mulheres indígenas nasciam os cafusos. Dos brancos com as mulheres negras, seleccionadas em África pela postura e beleza, chegadas mais tarde à colónia, nasciam os mulatos. Nasciam ainda os “pardos”, os “mestiços”, os “caboclos”, os “caipiras”… Porém, a primeira tragédia que atingiu a população indígena resultou exactamente desse primeiro impulso de desejo, um sentimento nobre que dizimou as mulheres índias, indefesas perante as doenças que os europeus e os africanos lhes transmitiam: epidemias de origem venérea e outras mais benignas como um simples sarampo varreram aldeias inteiras. Mas a fome e o desejo foram mais fortes e dos sobreviventes nasceu uma nova raça de gente, resistente e diversa, apta a povoar os espaços infinitos de uma nação gestante, uma nação de promessas e de esperanças.

O romance Iracema, de José de Alencar (1865), é a mais bela história de amor de toda a literatura de língua portuguesa. A índia de lábios de mel morreu por amor e foi enterrada num coqueiral à margem de um rio, onde as jandaias ainda hoje cantam o seu nome, imitando o choro de desespero do seu amado Martim. Sobreviveram e multiplicaram-se os filhos de milhões de Iracemas e hoje, no topo dos coqueiros, ainda cantam as jandaias. O romance é um hino à vida, para além de todos os percalços, de todos os preconceitos, de todos os valores provisórios sustentados pelos poderes ocultos. Se o Futuro é a Vida, vivamo-la já, que o tempo é pouco: que a Morte nos colha vivos, e não, como é de hábito, já meio mortos; aliás, suicidados (…) Na realidade não estou interessado em coisa alguma; sim, porém, em viver. Assim escrevia um português à solta, meio século antes de hoje. Chamava-se Agostinho da Silva, viveu nesta cidade de Salvador da Bahia entre 1959 e 1961, onde veio fundar o Centro de Estudos Afro-Orientais e vale a pena recordá-lo porque foi um homem de sentimentos nobres.


23 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

O orgulho de pertencer a uma grande nação é um sentimento nobre. A vergonha também é um sentimento nobre, um dos últimos recursos antes de assinar contrato com a morte. Há muitos portugueses, nesse país de pardais e de alambiques, que já não têm sentimentos nobres, talvez nem sentimentos tenham porque não lhes sobra tempo para os mostrar. Assim se desmoronam os impérios, assim morrem os escribas e as gaivotas. Disso se queixava Damião de Góis a propósito do tempo de El-rei D. João III, o pior e mais desastrado reinado de toda a nossa história, que durou 36 anos e deixou o país à beira do caos. Tanta piedade por tão pouco cabedal – diria Vieira do alto do púlpito da igreja de Acupe! Salva o rei o empenho na defesa e organização da colónia brasileira, perdidas as jóias do império, decisão acertada mas tardia –mal endémico da nossa tribo.Quase todos os homens esclarecidos do reino sofreram no corpo e na alma pelas suas convicções, difamados e perseguidos pela mediocridade crónica que afecta desde a sua origem o nosso país, onde o desperdício se negoceia na divisão de honra. Depois de sacrificados e mortos os profetas, a populaça arrependida ergue-lhes monumentos e estátuas, enfeita-lhes as campas e espalha sem tino os seus nomes pelas ruas e praças das redondezas. Alguns escapam à difamação e vingam-se do destino; desaparecidos os seus corpos, gozam de uma liberdade e de um esquecimento invejáveis. Patria ingrata, non possidebis ossa mea; é latim, língua morta e declinada!

O Brasil teve que ser reconquistado, depois de ter sido encontrado e atribuído a Portugal por alma daquele papel ridículo de Tordesilhas que nenhum outro país reconheceu nem respeitou. Países mais práticos e poderosos tentaram apoderar-se deste imenso espaço de promessas, sem gente armada para o defender. Foram 100 anos de luta, entre 1556 e 1654, para expulsar do Brasil os franceses, os ingleses e os holandeses. O maior esforço para a recuperação da soberania foi feito durante a monarquia espanhola, sobretudo a partir de 1615. Muitos heróis esquecidos deram a “alma e o cabedal” por uma causa nobre, sem qualquer recompensa para além do esquecimento. Enquanto no reino a populaça exultava com o cheiro da carne queimada nas fogueiras da Inquisição, homens como Jerónimo de Albuquerque consolidavam o domínio português num espaço tão grande como toda a península Ibérica e a França juntas, sem outros meios que o seu próprio génio militar e um punhado de corajosos. Um outro Albuquerque, Matias (conde de Alegrete), depois de ser herói na Índia e de libertar Pernambuco dos holandeses ainda veio destroçar os exércitos espanhóis que investiam contra a nova e indefesa dinastia de Bragança. Onde podemos lembrá-lo e apresentá-lo às nossas crias?

E há ainda os pioneiros do interior, os bandeirantes, que se lançaram em aventuras loucas à cata de ouro, diamantes e pedras preciosas, quase sempre sem sucesso, mas que contribuíram para revelar e delimitar o imenso território deste país. Eles chamavam-se Raposo Tavares, Dias Pais, Bartolomeu Bueno da Silva… Os jesuítas eram os seus inimigos de estimação e a força que os movia era a da utopia, um sonho de grandeza que fazia deles gente à parte, detestados por serem diferentes. Eram criaturas rudes e destemidas, gente sem missa nem sacramentos à solta pelos sertões da abundância, pioneiros da grandeza, arautos da liberdade, “argonautas” do futuro, como lhes chamou Vieira que os afogava em reprimendas, mas os admirava.

Aqueles anónimos que vieram em cata de refúgio, fugidos da justiça, renegados pelos seus, degredados por causa de opiniões, por opções religiosas, por terem roubado uma galinha ou o cabresto de um boi, encontraram neste espaço de praias, rios, florestas e sertões uma nova razão para cultivar uma roça, satisfazer paixões, ver crescer os filhos e ensinar um poldro a cavalgar. Plantaram cana-de-açúcar, tabaco, coqueiros e cacaueiros, desbastaram florestas, cavaram poços e minas que contribuíram para salvar o reino da ruína. O nome deles não consta do rol dos heróis nem mesmo dos soldados desconhecidos, não têm nome de rua nem de praça, nem sequer têm campa em cemitério. São gente anónima no panteão da grandeza escondida; o sangue deles também corre nas veias de milhões de brasileiros que ostentam com vaidade os nomes dos seus ancestrais, oriundos das serranias do interior, das planícies alentejanas, das terras alagadas, evadidos da pobreza e da opressão, à procura de viver.

O mais nobre dos sentimentos é aquele que nos satisfaz quando partilhamos com os outros a alegria de viver. Só que o mundo é um sertão onde viver é perigoso. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! (Guimarães Rosa).

 

25 de Maio de 2007, Salvador da Bahia.
12 58´29”S, 38 30' 93”W

Foram muitos quilómetros de estradas e de paisagens embriagantes pelo interior da Bahia: uma peregrinação e uma descoberta que devemos à gentileza do nosso anfitrião Abel Travassos, com 54 anos de “baianadas”. Não há gruta nem toca de tatu que lhe escape, nem mangueiral, nem canavial com alambique, horta com acerola, jambo e jenipapo, bambuzal e boiada das grandes, alçapão de supermercado nem fábrica de tijolo que não faça parte do seu cardápio. Pelo caminho tinha a Quinta do Tanque, São João da Mata, São Francisco do Conde, Santo Amaro da Purificação, Acupe e Cachoeira, no rio Paraguaçu. Uma peregrinação pelos espaços dos pioneiros da grande epopeia brasílica, uma descoberta da criatividade e do espírito inovador de um país jovem à beira de um êxtase colectivo.

Os espaços de Vieira eram a Quinta do Tanque, São João da Mata e Acupe; os outros fazem parte do espaço habitado do seu tempo, do empenho dos colonos em criar riqueza e em construir comunidades prósperas e seguras onde pudessem inventar um futuro diferente do passado triste e medíocre que lhes tolhera as ambições. Vamos deixar para mais tarde os espaços de Vieira para partilhar aqui, com os leitores deste Diário, as emoções mais imediatas. Uma delas aconteceu em São Francisco do Conde, no fundo da Baía de Todos os Santos, onde existem duas igrejas do tempo de Vieira, a de Santo António, do convento franciscano e uma outra, mais imponente mas em estado de quase degradação, dedicada a São Gonçalo. Os urubus disputam com as pombas a ocupação das torres, cujos sinos já não tocam. Em frente desta igreja há uma praça, invadida por velhos autocarros transformados em postos de assistência médica e no fundo da mesma uma série de painéis em baixo relevo representando os milagres de São Gonçalo de Amarante. A antiga sacristia serve de sala de ensaios à banda filarmónica da cidade e o telhado cria capim e arbustos que alimentariam um rebanho de cabras durante uma semana.

Quem foi que trouxe para estas bandas a história do santo de Amarante do século XIII e dos seus milagres, tão exemplar que mereceu o esforço da construção de um templo de grandes dimensões, com duas torres sineiras, paredes de fortaleza, resistindo ao tempo e ao abandono? Só podem ter sido emigrantes daquelas terras do Tâmega, carregando com eles a saudade e o desejo de preservar a memória das suas origens, da sua identidade original. Em 1689 Vieira pregou um sermão sobre São Gonçalo, não se sabe ao certo onde, algures na Bahia. Tinha 81 anos de idade, era visitador geral da Companhia mas não se afastava do Colégio; a viagem de barco saveiro à vela, entre Salvador e São Francisco do Conde, num dia de bom vento com a maré a favor leva cerca de 12 horas. É provável que não o tenha pregado nesta igreja, mas em qualquer outra da cidade de Salvador e certamente uma pregação mais curta. É um sermão longo, com mais de 40 páginas de texto, onde passa em revista os milagres atribuídos pela tradição popular ao santo, esses mesmos que estão expostos em baixo-relevo na praça da igreja. A devoção a São Gonçalo estaria difundida pelos núcleos de colonização da Bahia a tal ponto que mereceram este sermão de Vieira, que ele incluiu de imediato no VI volume da publicação dos Sermões, o que aconteceu no ano seguinte.

O sermão tem algo de profético, um pequeno detalhe nas últimas páginas. Que doutrina será bem logo a que tiremos da vida e obras de S. Gonçalo? A primeira que me ocorria seria útil e muito necessária, é que o imitássemos a fazer pontes. Coisa é digna de grande admiração, e que mal se poderá crer no mundo, que havendo 190 anos que dominamos esta terra, e havendo nela tantos rios e passos de dificultosa passagem, nunca houvesse indústria para fazer uma ponte. Que rio, ou que regato na Europa sem nome, e que lugar de quatro vizinhos, que nas pontes não seja magnífico! Só por elas se conserva em Espanha a memória que os romanos a dominaram. (VI, 335) As imagens impressas no papel moeda da comunidade europeia, criadas pouco mais de 300 anos depois deste sermão de Vieira, são pontes.

Ninguém nos soube explicar o relacionamento entre este núcleo de colonização e a região do vale do Tâmega, onde a devoção a São Gonçalo tem as suas raízes mais profundas, mas o testemunho de pedra e cal resiste no ponto mais alto da cidade há mais de 400 anos, com sua fachada virada para a Baía de Todos os Santos, à espera de quem possa emocionar-se com a história e caiar as paredes de branco, limpar o capim do telhado e fazer rodar os sinos, por amor de um santo popular trazido do outro lado de um oceano inteiro no coração de emigrantes em cata da felicidade. Uma ponte entre dois continentes, uma história de coragem e de amor. Cada maravilha da arte e do engenho humano tem sempre por detrás uma história de amor.