SERMÃO
DE
SANTO ANTÔNIO
Nota Introdutória
Informações Histórico-epistemológica
O Sermão de Santo
Antônio foi pregado em São Luis do Maranhão, em 1654,
no dia 13 de junho, está nos primeiros lugares entre as obras primas
produzidas pelo mestre. É chamado Sermão aos Peixes. Trata-se
de uma grande aula de dignidade e respeito à dignidade humana produzida
pelo grande mestre do Brasil, de Portugal e do Mundo. É uma imensa
e firme e enérgica lição de vida. Mais uma vez Vieira
prova sua decisão de instruir o povo para fazer uma cidade melhor.
Diz o que tem a dizer ao povo, com a firmeza dos profetas. Vieira nunca
foi homem de duas palavras e nunca se omitiu. “Ai de mim porque me
calei” diz a Escritura. Vieira nunca dirá isto. Age e fala
como profeta. Nunca foi morno.“Porque não és frio nem
quente, porque és morno, eu te vomito”, diz o Senhor Deus.
Foi um homem, um missionário “quente”, corajoso e destemido.
Foi um profeta intrépido. Foi um homem intrépido, dedicado,
generoso e cordato, como todo pregador deveria ser. Ensinou por palavras,
por obras e por atitudes. Nunca confundiu o pecado com o pecador. Soube
combater o “pecado” e respeitar o pecador e sua dignidade humana.
Vieira faz um Sermão
todo alegórico para melhor convencer e “converter” o
povo: simula a falar aos peixes como fez Santo Antônio, na cidade
de Arimino. É uma estratégia digna dos maiores mestres da
humanidade. Foi um homem intrépido, dedicado, generoso e cordato,
com todo o pregador deveria ser.
Os grandes defeitos do povo
da cidade de São Luis, ou de qualquer cidade do mundo, Vieira os
personificou no peixe roncador, no voador, no pegador, no polvo, etc. Os
ouvintes entendiam muito bem a imagem: sabiam quem era roncador, peixe voador,
pegador, polvo e todos os demais. Ele fez o retrato da alma, dos defeitos
das pessoas e as exortou a saírem, se converterem a uma vida mais
digna... O sermão tem uma irresistível força persuasiva.
É de se imaginar que este Sermão produziu um abalo sísmico
na cidade.
Vieira pregou este
Sermão bombástico, como primeiro de uma série de sermões
de grande energia e veemência.
Três dias depois Vieira
viaja para Lisboa, onde ia implorar arrimo do rei, D. João IV, para
dar força à ação dos missionários em
sua obra apostólica, pela liberdade dos índios. No trajeto,
sua nau naufraga, na altura dos Açores. Vieira aí se mantém
três meses, trabalhando. No final quase na despedida, prega o grande
Sermão de Santa Teresa, no dia 15 de outubro.
No dia 1º de janeiro de 1655,
já em Portugal, prega um outro Sermão bombástico, o
Sermão da Sexagésima, um outro sermão genial, primoroso,
veemente, profético. Produz aqui mais uma imenso abalo, ao denunciar
os mestres da oratória e ao propor um novo paradigma: O semeador
que semeia.
Os três sermões aqui
referidos estão plenamente articulados. Vieira luta pelo bem espiritual
e temporal das pessoas. São verdadeiros choques de dignidade e toques
de despertar, por um mundo melhor.
Neste Sermão Vieira desembainhou
a sua espada da palavra de Deus, para “esgrimir” e denunciar
todas as injustiças e falcatruas da sociedade.
Se as pessoas do século
XXI lessem esse Sermão e o interpretassem e o aplicassem às
suas vidas, e ao mundo de hoje, teríamos certamente um mundo mais
solidário e com mais paz.
SERMÃO
DE
S. ANTÔNIO
Vos estis sal terrae.(Mt. 5,13)
[Vós sois os sal da terra]
I
1. Vós,
diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra. E
chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o
sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando
a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo
tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual
pode ser a causa desta corrupção?
Ou é porque o sal não
salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque
o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira
a doutrina que lhes dão, a não querem receber; ou é
porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes
imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem; ou é porque o sal
não salga, e os pregadores se pregam a si, e não a Cristo;
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir
a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade?
Ainda mal.
2. Suposto
pois que, ou o sal não salgue, ou a terra se não deixe salgar,
que se há de fazer a este sal, e que se há de fazer a esta
terra? O que se há de fazer ao sal que não salga, Cristo o
disse logo:
Quod si sal evanuerit, in quo salietur?
[Se
o sal perder a sua força, com que poderemos salgá-lo]
Ad
nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras,
et conculcetur ab hominibus (Mt. 5, 13)
[Para nada mais serve a não ser para
jogar fora
e ser pisado pelos homens]
Se o sal perder a substância
e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se
lhe há de fazer é lançá-lo fora como inútil,
para que seja pisado de todos.
Quem se atrevera a dizer tal coisa,
se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há
quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça
que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de
todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés o que, com a palavra
ou com a vida, prega o contrário.
3. Isto
é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra
que se não deixa salgar, que se lhe há de fazer? Este ponto
não resolveu Cristo Senhor nosso no Evangelho, mas temos sobre ele
a resolução do nosso grande português, Santo Antônio,
que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução
que nenhum santo tomou.
Pregava Santo Antônio em Itália,
na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos, e, como os
erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só
não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele,
e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida.
Que faria neste caso o ânimo generoso
do grande Antônio? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo
aconselha em outro lugar? Mas Antônio, com os pés descalços,
não podia fazer esta protestação; e uns pés,
a que se não pegou nada da terra, não tinham que sacudir.
Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao
tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana;
mas o zelo da glória divina que ardia naquele peito, não se
rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez?
Mudou somente o púlpito e o auditório,
mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às
praias, deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes:
Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes.
Oh! maravilhas do Altíssimo! Oh! poderes
do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam
a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos
por sua ordem, com as cabeças de fora da água, Antônio
pregava, e eles ouviam.
4. Se a Igreja quer que preguemos
de Santo Antônio sobre o Evangelho, dê-nos outro.
Vos estis sal terrae [Vós sois o sal da terra]
é muito bom texto para os outros santos Doutores, mas para Santo
Antônio vem-lhe muito curto. Os outros santos Doutores da Igreja foram
sal da terra; S. Antônio foi sal da terra, e foi sal do mar.
Este é o assunto que eu tinha
para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento
que nas festas dos santos é melhor pregar como eles, que pregar deles.
Quanto mais que o som da minha doutrina, qualquer
que ele seja, tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à
de Santo Antônio em Arimino, que é força segui-la em
tudo.
Muitas vezes vos tenho pregado nesta Igreja e noutras,
de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito
clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária
e importante é a esta terra, para emenda e reforma dos vícios
que a corrompem.
O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra
tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis, e eu por vós
o sinto.
5. Isto
suposto, quero hoje, à imitação de S. Antônio,
voltar-me da terra ao mar, e, já que os homens se não aproveitam,
pregar aos peixes. O mar está tão perto, que bem me ouvirão.
Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles.
Maria quer dizer Domina Maris, Senhora
do mar, e, posto que o assunto seja tão desusado, espero
que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.
II
6. Enfim, que havemos de
pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm
os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem, e não falam. Uma
só coisa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente
os peixes que se não há de converter. Mas esta dor é
tão ordinária, que já pelo costume quase se não
sente.
Por esta causa, não falarei hoje
em céu, nem inferno, e assim será menos triste este sermão
do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança
destes dois fins.
7. Vos
estis sal terrae [Vós
sois o sal da terra]
Haveis de saber, irmãos peixes,
que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais
em vós mesmos se experimentam: conservar o são, e preservá-lo
para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações
do vosso pregador, S. Antônio, como também as devem ter as
de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal:
louvar o bem para o conservar, e repreender o mal para preservar dele.
Nem cuideis que isto pertence só
aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o
grande doutor da Igreja, São Basílio:
Non
carpere solum, reprehendereque possumus pisces
sed
sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione:
Não
só há que notar, diz o santo, e que repreender nos peixes,
senão também que
imitar e louvar.
Quando Cristo comparou a sua Igreja
à rede de pescar:
Sagenae
missae in mare
[Rede
lançada ao mar]
diz que os pescadores recolheram os peixes bons, e lançaram fora
os maus:
Collegerunt
bonos in vasa, malos autem foras miserunt (Mt. 13, 47 s).
[Escolheram
os bons em um cesto e os ruins jogaram fora]
E onde há bons e maus,
há que louvar e que repreender.
Suposto isto, para que procedamos
com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no
primeiro, louvar-vos-ei as vossas virtudes; no segundo, repreender-vos-ei
os vossos vícios.
E desta maneira satisfaremos às
obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos,
que experimentá-las depois de mortos.
8. Começando,
pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer
que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as
primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que às aves
do ar, a vós primeiro que aos animais da terra, e a vós primeiro
que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e domínio de todos
os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou
com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes:
Ut
praesit piscibus maris, et volatibus caeli,
et
bestiis, universaeque terrae (Gn. 1,26)
[Para
que tenha domínio sobre os peixes do mar,
e
sobre as aves do céu e sobre os animais domésticos
e
sobre toda a terra]
Entre todos os animais do
mundo, os peixes são os mais, e os peixes os maiores. Que comparação
têm em número as espécies das aves e as dos animais
terrestres com as dos peixes?
Que comparação na grandeza
o elefante com a baleia? Por isso Moisés, cronista da criação,
calando os nomes de todos os animais, só a ela nomeou pelo seu:
Creavit
Deus cete grandia(Gn. 1,21)
[Deus
criou os grandes animais marinhos]
E os três músicos da fornalha
de Babilônia o cantaram também como singular entre todos:
Benedicite
cete, et omnia quae moventur in aquis Domino ( Dn.3,79)
[Bendizei
ao Senhor, grandes animais
marinhos
e tudo que se move nas águas]
Estes e outros louvores, estas e outras excelências
de vossa geração e grandeza, vos pudera dizer, ó peixes,
mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades,
e é também para os lugares em que tem lugar a adulação,
e não para o púlpito.
9. Vindo
pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só
podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos, hoje,
é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela
honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, e quietação,
e atenção, com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu
servo Antônio.
Oh! grande louvor verdadeiramente para
os peixes, e grande afronta e confusão para os homens! Os homens,
perseguindo a Antônio, querendo-o lançar da terra, e ainda
do mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque
lhes não queria falar à vontade, e condescender com seus erros,
e no mesmo tempo os peixes, em inumerável concurso, acudindo à
sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio
e com sinais de admiração e assenso, como se tiveram entendimento,
o que não entendiam.
Quem olhasse neste passo para
o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados,
e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de
dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em
homens, e os homens, não em peixes, mas em feras.
Aos homens deu Deus uso
de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham
a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão. Muito louvor
mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes
aos pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só
esta a vez em que assim o fizestes.
Ia Jonas, pregador do mesmo Deus,
embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade. E como
o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no
ao mar a ser comido dos peixes; e o peixe que o comeu levou-o às
praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles
homens. É possível que os peixes ajudam à salvação
dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?
Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois
que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o
peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.
10. Mas,
porque nestas duas ações teve maior parte a onipotência
que a natureza como também em todas as milagrosas que obram os homens,
passo às virtudes naturais e próprias vossas.
Falando dos
peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais,
se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres, o cão
é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi
tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro,
e até os leões e os tigres com arte e benefícios se
amansam.
Dos animais do ar,
afora aquelas aves que se criam e vivem conosco, o papagaio nos fala, o
rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia, e até
as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão
de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá
se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá
se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande,
que se fie do homem, nem tão pequeno, que não fuja dele.
Os autores comumente condenam
esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade
ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não
condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que,
se não fora natureza, era grande prudência.
Peixes, quanto mais longe dos homens
tanto melhor: trato e familiaridade com eles, Deus vos livre!
Se os animais da terra e do ar querem
ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões
o fazem.
Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas
na sua gaiola; diga-lhe ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com
eles à caça o açor, mas nas suas pioses; faça-lhes
bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhe roer
um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe
chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo
arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas
debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhes comem
a ração da carne que não caçaram no bosque sejam
presos e encerrados com grades de ferro.
E entretanto, vós peixes, longe
dos homens, e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco sim,
mas como peixes na água. De casa, e das portas a dentro, tendes o
exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há
filósofos que dizem que não tendes memória.
11.
No tempo de Noé sucedeu o dilúvio, que cobriu e alagou o mundo;
e de todos os animais, quais livraram melhor? Dos leões escaparam
dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias
escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes?
Todos escaparam: antes, não só escaparam todos, mas ficaram
muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar, tudo era mar.
Pois se morreram naquele universal
castigo todos os animais da terra e todas as aves, por que não morreram
também os peixes? Sabeis por quê? diz Santo Antônio porque
os outros animais, como mais domésticos, ou mais vizinhos, tinham
mais comunicação com os homens; os peixes viviam longe e retirados
deles.
Facilmente pudera Deus fazer
que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como
afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas
ervas, com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água
vos mata. Mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava
aos homens por seus pecados, e ao mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima
providência da divina justiça que nele houvesse esta diversidade
ou distinção, para que o mesmo mundo visse que da companhia
dos homens lhe viera todo o mal, e que por isso os animais que viviam mais
perto deles foram também castigados, e os que andavam longe ficaram
livres.
Vede, peixes, quão grande bem
é estar longe dos homens. Perguntado um grande filósofo qual
era a melhor terra do mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha
os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo Antônio,
e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças
ao Criador, bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava Deus,
tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus
pais, e se recolheu ou acolheu a uma religião onde professasse perpétua
clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro
deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal.
Para fugir e se esconder
dos homens, mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo
se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota,
com que não fosse conhecido, nem buscado, antes, deixado de todos,
como lhe sucedeu com seus próprios irmãos no Capítulo
Geral de Assis.
Dali se retirou a fazer
vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus, como
por força, o não manifestara, e por fim acabou a vida em outro
deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.
III
12. Este é, peixes,
em comum, o natural que em todos vós louvo, e a felicidade de que
vos dou o parabéns, não sem inveja.
Descendo ao particular,
infinita matéria fora se houvera de discorrer pelas virtudes de que
o Autor da natureza a dotou e fez admirável em cada um de vós.
De alguns, somente, farei menção.
E o que tem o primeiro lugar entre todos, como tão celebrado na Escritura,
é aquele Santo Peixe de Tobias, a quem o texto sagrado não
dá outro nome que de grande, como verdadeiramente o foi nas virtudes
interiores, em que só consiste a verdadeira grandeza.
Ia Tobias caminhando com
o anjo. S. Rafael, que o acompanhava, e descendo a lavar os pés do
pó do caminho nas margens de um rio, eis que o investe um grande
peixe com a boca aberta, em ação de que o queria tragar. Gritou
Tobias assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana,
e o arrastasse para a terra, que o abrisse e lhe tirasse as entranhas, e
as guardasse, porque lhe haviam de servir muito.
Fê-lo assim Tobias,
e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara
guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira, e o
coração para lançar fora os demônios:
Cordis
ejus particulam, si super carbones ponas,
fumus
ejus extricat omne genus daemoniorum,
et
fel valei ad ungendos oculos,
in
quibus fuerit albugo, et sanabuntur (To. 6,8s)
[Se
puseres sobre as brasas um pedaço do coração dele,
A
fumaça espanta toda a espécie de demônios.
O
fel serve para untar os olhos que tiverem mancha
e
a pessoa fica curada]
Assim o disse o anjo,
e assim o mostrou logo a experiência, porque, sendo o pai de Tobias
cego, aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno do fel, cobrou inteiramente
a vista, e tendo um demônio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a
Sara, casou com ela o mesmo Tobias, e queimando na casa parte do coração,
fugiu dali o demônio, e nunca mais tornou. De sorte que o fel daquele
peixe tirou a cegueira a Tobias, o velho, e lançou os demônios
de casa a Tobias, o moço. Um peixe de tão bom coração
e de tão proveitoso fel, quem o não louvara muito?
Certo que se a este peixe o vestiram
de burel e o ataram com uma corda, pareceria um retrato marítimo
de Santo Antônio. Abria Santo Antônio a boca contra os hereges,
e enviava-se a eles, levado do fervor e zelo da fé e glória
divina. E eles, que faziam? Gritavam como Tobias, e assombravam-se com aquele
homem, e cuidavam que os queria comer.
Ah! homens, se houvesse
um anjo que vos revelasse qual é o coração desse homem,
e esse fel, que tanto vos amarga, quão proveitoso e quão necessário
vos é! Se vós lhe abrísseis esse peito, e lhe vísseis
as entranhas, como é certo que havíeis de achar e conhecer
claramente nelas que só duas coisas pretende de vós e convosco:
uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos
os demônios fora de casa. Pois, a quem vos quer tirar as cegueiras,
a quem vos quer livrar dos demônios, perseguis vós? Só
uma diferença havia entre Santo Antônio e aquele peixe: que
o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo Antônio abria
a sua contra os que se não queriam lavar.
Ah! moradores do Maranhão,
quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri essas entranhas;
vede, vede esse coração. Mas ah! sim, que me não lembrava!
Eu não vos prego a vós, prego aos peixes.
13. Passando dos da Escritura
aos da História Natural, quem haverá que não louve
e admire muito a virtude tão celebrada da rêmora? No dia de
um Santo Menor, os peixes menores devem preferir a outros. Quem haverá,
digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão pequeno
no corpo, e tão grande na força e no poder, que não
sendo maior de um palmo, se se pega ao leme de uma nau da Índia,
apesar das velas, e dos ventos e de seu próprio peso e grandeza,
aprende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover nem
ir por diante.
Oh! se houvera uma rêmora
na terra que tivesse tanta força como a do mar, que menos perigos
haveria na vida, e que menos naufrágios no mundo! Se alguma rêmora
houve na terra, foi a língua de Santo Antônio, na qual, como
na rêmora, se verifica o verso de S. Gregório Nazianzeno:
Lingua
quidem parva est, sed viribus omnia vincit.
[Certa
língua é pequena mas com suas forças vencem tudo]
O apóstolo São Tiago,
naquela sua eloqüentíssima Epístola, compara a língua
ao leme da nau e ao freio do cavalo.
Uma e outra comparação juntas declaram
maravilhosamente a virtude da rêmora, a qual, pegada ao leme da nau,
é freio da nau e leme do leme.
E tal foi a virtude e força da língua
de Santo Antônio. O leme da natureza humana é o alvedrio, o
piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à
razão os ímpetos precipitados do alvedrio?
Neste leme, porém, tão desobediente
e rebelde, mostrou a língua de Antônio quanta força
tinha, como rêmora, para domar e parar a fúria das paixões
humanas.
Quantos, correndo fortuna na Nau-Soberba, com as velas
inchadas do vento e da mesma soberba que também é vento se
iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua
de Antônio, como rêmora, não tivesse mão no leme
até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse
a tempestade de fora e a de dentro?
Quantos, embarcados na Nau-Vingança, com a artilharia
abocada e os bota-fogos acesos, corriam enfunados a dar-lhe batalha, onde
se queimariam ou deitariam a pique, se a rêmora da língua de
Antônio lhes não detivesse a fúria, até que,
composta a ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente?
Quantos, navegando na Nau-Cobiça, sobrecarregada
até as gáveas, aberta com o peso por todas as costuras, incapaz
de fugir nem se defender, dariam nas mãos dos corsários, com
perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua de Antônio
os não fizesse parar como rêmora, até que, aliviados
da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto?
Quantos na Nau-Sensualidade, que sempre navega com cerração,
sem sol de dia nem estrela de noite, enganados do canto das sereias, e deixando-se
levar da corrente, se iriam perder cegamente ou em Sila, ou em Caribdes,
onde não aparecesse navio nem navegante, se a rêmora da língua
de Antônio os não contivesse até que esclarecesse a
luz e se pusessem em via?
Esta é a língua, peixes, do
vosso grande pregador, que também foi rêmora vossa, enquanto
o ouvistes, e porque agora está muda, posto que ainda se conserva
inteira, se vêem, e choram na terra tantos naufrágios.
14. Mas,
para que da admiração de uma tão grande virtude vossa,
passemos ao louvor ou inveja de outra não menor, admirável
é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os Latinos
chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que
de vista, mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são
maiores, mais se escondem. Está o pescador com a cana na mão,
o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em lhe picando na
isca o torpedo, começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior,
mais breve e mais admirável efeito? De maneira que num momento passa
a virtude do peixezinho da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha
à cana, e da cana ao braço do pescador.
Com muita razão disse que este
vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do
nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente em tudo o que
pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que
me espanta é que pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto
pescar e tão pouco tremer? Pudera-se fazer problema onde há
mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na
terra? E é certo que na terra.
Não quero discorrer
por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes;
baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento
do nosso caso.
No mar pescam as canas, na terra
pescam as varas e tanta sorte de varas pescam as ginetas, pescam as bengalas,
pescam os bastões, e até os cetros pescam; e pescam mais que
todos, porque pescam cidades e reinos inteiros.
Pois, é possível que,
pescando os homens coisas de tanto peso, lhes não trema a mão
e o braço?
Se eu pregara aos homens e tivera a
língua de Santo Antônio, eu os fizera tremer.
Vinte e dois pescadores destes se acharam
acaso a um sermão de S. Antônio, e as palavras do santo os
fizeram tremer a todos, de sorte que todos, tremendo, se lançaram
a seus pés; todos, tremendo, confessaram seus furtos; todos, tremendo,
restituíram o que podiam que isto é o que faz tremer mais
neste pecado que nos outros todos, enfim, mudaram de vida e de ofício,
e se emendaram.
15. Quero
acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes, com um que não
sei se foi ouvinte de Santo Antônio, e aprendeu dele a pregar. A verdade
é que me pregou a mim, e se eu fora outro, também me convertera.
Navegando daqui para o Pará,
que é bem não fiquem de fora os peixes da nossa costa, vi
correr pela tona da água, de quando em quando, a saltos, um cardume
de peixinhos que não conhecia. E como me dissessem que os portugueses
lhes chamavam quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a razão deste
nome, e achei que verdadeiramente têm quatro olhos, em tudo cabais
e perfeitos.
Dá graças a Deus, lhe
disse, e louva a liberalidade de sua divina Providência para contigo,
pois às águias, que são os linces do ar, deu somente
dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra, também
dois, e a ti peixinho, quatro. Mais me admirei ainda considerando, nesta
maravilha, a circunstância do lugar.
Tantos instrumentos de vista a um bichinho
do mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite
Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes, há
tantos séculos?
Oh! quão altas e incompreensíveis
são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de
seus juízos!
Filosofando, pois, sobre a causa natural
desta providência, notei que aqueles quatro olhos estão lançados
um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles, unidos como os
dois vidros de um relógio de areia, em tal forma, que os da parte
superior olham diretamente para cima, e os da parte inferior diretamente
para baixo.
E a razão desta nova arquitetura é
porque estes peixinhos, que sempre andam na superfície da água,
não só são perseguidos dos outros peixes maiores do
mar, senão também de grande quantidade de aves marítimas,
que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e inimigos no
ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas, e deu-lhes dois olhos, que diretamente
olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois, que diretamente
olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.
Oh! que bem informara estes quatro olhos
uma alma racional, e que bem empregada fora neles, melhor que em muitos
homens!
Esta é a pregação
que me fez aquele peixezinho, ensinando-me que, se tenho fé e uso
de razão, só devo olhar diretamente para cima, e só
direitamente para baixo: para cima, considerando que há céu,
e para baixo, lembrando-me que há inferno.
Não me alegou para isso passo da Escritura,
mas então me ensinou o que quis dizer Davi em um, que eu não
entendia:
Averte
oculos meos, ne videant vanitatem (Sl. 11, 37)
Voltai-me,
Senhor, os olhos, para que não vejam a vaidade
Pois, Davi não podia voltar os seus
olhos para onde quisesse? Do modo que ele queria, não. Ele queria
voltados os seus olhos de modo que não vissem a vaidade, e isto não
o podia fazer neste mundo, para qualquer parte que voltasse os olhos, porque
neste mundo tudo é vaidade:
Vanitas
vanitatum, et omnia vanitas (Ecl. 1, 2)
[Vaidade
das vaidades, tudo é vaidade]
Logo, para não verem os olhos
de Davi a vaidade, havia-lhos de voltar Deus de modo que só vissem
e olhassem para o outro mundo, em ambos seus hemisférios: ou para
o de cima, olhando direitamente só para o céu, ou para o de
baixo, olhando direitamente só para o inferno.
E esta é a mercê que pedia a
Deus aquele grande profeta, e esta a doutrina que me pregou aquele peixinho
tão pequeno.
16. Mas
ainda que o céu e o inferno se não fez para vós, irmãos
peixes, acabo e dou fim a vossos louvores, com vos dar as graças
do muito que ajudais a ir ao céu, e não ao inferno, os que
se sustentam de vós.
Vós sois os que, sustentais
as Cartuxas e os Bussacos, e todas as santas famílias que professam
mais rigorosa austeridade. Vós os que, a todos os verdadeiros cristãos,
ajudais a levar a penitência das quaresmas. Vós aqueles com
que o mesmo Cristo festejou a sua Páscoa, as duas vezes que comeu
com seus discípulos depois de ressuscitado.
Prezem-se as aves
e os animais terrestres de fazer esplêndidos e custosos os banquetes
dos ricos, e vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abstinência
dos justos. Tendes todos quantos sois, tanto parentesco e simpatia com a
virtude, que, proibindo Deus, no jejum, a pior e mais grosseira carne, concede
o melhor e mais delicado peixe. E posto que, na semana, só dois se
chamam vossos, nenhum dia vos é vedado.
Um só lugar vos deram
os astrólogos entre os signos celestes; mas os que só de vós
se mantêm na terra, são os que têm mais seguros os lugares
do céu.
Enfim, sois criaturas daquele
elemento cuja fecundidade entre todos é própria do Espírito
Santo:
Spiritus
Domini faecundabat aquas
[O
espírito do Senhor fecundava as águas]
17. Deitou-vos
Deus a bênção que crescêsseis e vos multiplicásseis.
E para que o Senhor vos confirme essa bênção, lembrai-vos
de não faltar aos pobres com o seu remédio. Entendei que,
no sustento dos pobres, tendes seguros os vossos aumentos.
Tomai o exemplo nas irmãs sardinhas.
Por que cuidais que as multiplica o Criador em número tão
inumerável? Porque são sustento de pobres.
Os solhos e os salmões são
muito contados, porque servem à mesa dos reis e dos poderosos. Mas
o peixe que sustenta a fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo o multiplica
e aumenta. Aqueles dois peixes,
companheiros dos cinco pães do deserto, multiplicaram tanto que deram
de comer a cinco mil homens.
Pois, se peixes mortos, que sustentam
a pobres, se multiplicam tanto, quanto mais e melhor o farão, os
vivos.
Crescei peixes, crescei e multiplicai-vos,
e Deus vos confirme a sua bênção.
IV
18. Antes, porém,
que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também
agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão,
já que não seja de emenda.
A primeira coisa que me desedifica,
peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo
é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só
vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.
Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os
grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas, como os grandes comem
os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil para um só grande.
Olhai como estranha isto
Santo Agostinho:
Homines
pravis, perversisque cupiditatibus
facti
sunt veluti pisces invicem se devorastes:
Os
homens, com suas más e perversas cobiças,
vêm
a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.
Tão alheia coisa
é, não só da razão, mas da mesma natureza, que,
sendo todos criados do mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria,
e todos, finalmente, irmãos, vivais de vos comer.
Santo Agostinho, que pregava
aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho
nos peixes, e eu que prego aos peixes, para que vejais quão feio
e abominável é, quero que o vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar
para a terra. Não, não: não é isso o que vos
digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão?
Para cá, para cá:
para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os tapuias
se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá,
muito mais se comem os brancos.
Vedes vós todo aquele
bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças
e cruzar as ruas?
Vedes aquele subir e descer as
calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação,
nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão
de comer, e como se hão de comer.
19. Morreu
algum deles: vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo
e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no
os legatários; comem-no os acredores, comem-no os oficiais dos órfãos,
e os dos defuntos e ausentes; comeu o médico que o curou, ou ajudou
a morrer; comeu o sangrador que lhe tirou o sangue; comeu a mesma mulher,
que de má vontade lhe dá para mortalha, o lençol mais
velho da casa; comeu o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e
os que, cantando, o levam a enterrar; enfim ainda ao pobre defunto o não
comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
Já se os homens
se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos
matéria de sentimento. Mas, para que conheçais a que chega
a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem
vivos, assim como vós.
Vivo estava Jó quando
dizia:
Quare
persequimini me, et carnibus meis saturamini (Jó 19, 22)
Por
que me perseguis tão desumanamente,
vós
que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?
Quereis ver um Jó destes?
Vede um homem, desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes,
e olhai quantos o estão comendo. Comeu o meirinho, comeu o carcereiro,
comeu o escrivão, comeu o solicitador, comeu o advogado, comeu o
inquiridor, comeu a testemunha, comeu o julgador, e ainda não está
sentenciado, e já está comido.
São piores os homens que
os corvos.
O triste que foi à forca,
não o comem os corvos, senão depois de executado e morto;
e o que anda em juízo, ainda não está executado nem
sentenciado, e já está comido.
20. E para
que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos
modos com que vós vos comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste
pecado:
Nonne
cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem,
qui
devorant plebem meam ut cibum panis?(Sl. 13,4)
[Acaso
esses malfeitores não percebem?
Eles
devoram o meu povo come se come um pedaço de pão]
Cuidais, diz Deus, que não há
de vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido aqueles que
cometem a maldade? E que maldade é esta, à qual Deus singularmente
chama a maldade, como se não houvera outra no mundo? E quem são
aqueles que a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros,
e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos:
Qui
devorant plebem meam, ut cibum panis.
[Eles
devoram o meu povo come se come um pedaço de pão]
Nestas palavras, pelo que
vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas coisas quantas
são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só
o seu povo, senão declaradamente a sua plebe:
Plebem meam, [o meu povo]
porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos
podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos.
E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que
os engolem e os devoram:
Qui
devorant, [Eles devoram]
porque os grandes, que têm o mando das cidades e das províncias,
não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos
a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros:
Qui
devorant plebem meam.
[Eles
devoram meu povo]
E de que modo os devoram e comem?
Ut
cibum panis:
[como
um pedaço de pão]
Não como os outros comeres, senão
como pão.
A diferença que há entre
o pão e os outros comeres, é que para a carne há dias
de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses
no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre
e continuadamente se come; e isto é o que padecem os pequenos. São
o pão cotidiano dos grandes, e assim como o pão se come com
tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos,
não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem,
em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não
comam, traguem e devorem:
Qui
devorant plebem meam, ut cibum panis.
[Eles
devoram o meu povo como um pedaço de pão]
Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me
que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não,
e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que
entre os homens haja tal injustiça e maldade!
Pois isto mesmo é o que vós
fazeis. Os maiores comeis os pequenos, e os muitos grandes, não só
os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuadamente,
sem diferença de tempos, não só de dia, senão
também de noite, às claras e às escuras, como também
fazem os homens.
21. Se
cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram
e passam sem castigos, enganais-vos.
Assim como Deus as castiga
nos homens, assim também, por seu modo, as castiga em vós.
Os mais velhos que me ouvis e estais
presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouvireis murmurar aos
passageiros nas canoas, e muitos mais lamentar aos miseráveis remeiros
delas, que os maiores, que cá foram mandados, em vez de governar
e aumentar o mesmo Estado, o destruíram, porque toda a fome que de
lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos. Assim foi.
Mas se entre vós
se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão
com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam
estes lá no Tejo, que esses mesmos maiores que cá comiam os
pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que os comam também
a eles.
Este é o estilo da divina
justiça, tão antigo e manifesto, que até os gentios
o conheceram e celebraram:
Vos
quibus redor maris, atque terrae
Jus
dedit magnum necis, atque vitae;
Ponite
inflatos, tumidosque vultus;
Quidquid
a vobis minor extimescit.
Major
hoc vobis Dominus minatur.
22. Notai,
peixes, aquela definição de Deus:Rector maris, atque terrae:
governador do mar e da terra, para que não
duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com os homens na terra, observa
também convosco no mar. Necessário é, logo, que olheis
por vós, e que não façais pouco caso da doutrina que
vos deu o grande Doutor da Igreja, Santo Ambrósio, quando, falando
convosco, disse:
Cave
nedum alium insequeris, incidas in validiorem:
Guarde-se
o peixe que persegue o mais fraco, para o comer,
não se ache na boca do mais forte, que o engula a ele.
Nós o vemos aqui
cada dia. Vai o xaréu correndo atrás do bagre, como o cão
após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas
o tubarão, com quatro ordens de dentes, que o há de engolir
de um bocado.
É o que com maior elegância
vos disse também Santo Agostinho:
Praeda
minoris fit praeda majoris.
[Presa
do menor faz-se presa do maior]
Mas não bastam, peixes,
estes exemplos, para que acabe de se persuadir a vossa gula que a mesma
crueldade, que usais com os pequenos, tem já aparelhado o castigo
na voracidade dos grandes?
23. Já que assim
o experimentais com tanto dano vosso, importa que, daqui por diante, sejais
mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que, este prevaleça
contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que,
assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos,
vos venhais a consumir de todo.
Não vos bastam tantos inimigos de fora,
e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes quantos são
os pescadores, que nem de dia, nem de noite, deixam de vos pôr em
cerco, e fazer guerra por tantos modos? Não vedes que contra vós
se emalham e entralham as redes, contra vós se tecem as nassas, contra
vós se torcem as linhas; contra vós se dobram e farpam os
anzóis, contra vós as fisgas e os arpões? Não
vedes que contra vós até as canas são lanças,
e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais
tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também
vós, de vossas portas a dentro, o haveis de ser mais cruéis,
perseguindo-vos com uma guerra mais que civil, e comendo-vos uns aos outros?
Cesse, cesse já,
irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia;
e pois vos chamei, e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações
deste nome.
Não estáveis vós
muito quietos, muito pacíficos, e muito amigos todos, grandes e pequenos,
quando vos pregava S. Antônio? Pois continuai assim, e sereis felizes.
24.
Dir-me-eis, como também dizem os homens, que não tendes outro
modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre vós muitos que
não comem os outros?
O mar é muito largo,
muito fértil, muito abundante, e, só com o que bota às
praias, pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se
uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não
estatuto da natureza.
Os da terra e do ar, que
hoje se comem, no princípio do mundo não se comiam, sendo
assim conveniente e necessário para que as espécies de todos
se multiplicassem.
O mesmo foi,
ainda mais claramente, depois do dilúvio, porque, tendo escapado
somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se se comessem.
E finalmente, no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos
dentro na Arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz,
o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar, e, se acaso
lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se
acomodaram com a ração do paiol comum, que Noé lhes
repartia.
Pois se os animais dos outros
elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, por
que o não serão os da água? Enfim se eles em tantas
ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação
e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também,
ou fazei a virtude sem necessidade, e será maior virtude.
25. Outra
coisa muito geral, que não tanto me desedifica quanto me lastima
em muitos de vós, é aquela tão notável ignorância
e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam por estas
partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano
cortado, e, aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo
delgado até tocar na água, e, em o vendo o peixe, arremete
cego a ele, e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no
ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior
ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho
de pano, perder a vida?
Dir-me-eis que o mesmo
fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha
contra outro exército; metem-se os homens pelas pontas dos piques,
dos chuços, e das espadas, e por quê? Porque houve quem os
engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano.
A vaidade, entre os
vícios, é o pescador mais astuto, e que mais facilmente engana
os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca nas pontas desses piques,
desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco,
que se chama Hábito de malta, ou verde, que se chama de Aviz, ou
vermelho, que se chama de Cristo e de São Tiago, e os homens, por
chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar
e engolir o ferro. E depois disso, que sucede? O mesmo que a vós.
O que engoliu o ferro, ou ali ou noutra ocasião, ficou morto, e os
mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros.
Por este exemplo vos concedo,
peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece
que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque
cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não
há exércitos, nem essa ambição de hábitos.
26. Mas
nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os
homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignorantemente. Quem pesca
as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem
do mar com uns retalhos de pano.
Vem um mestre
de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e
quatro sedas, que já se lhes passou a era e não têm
gasto, e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra,
dá-lhes uma saca-dela, e dá-lhes outra, com que cada vez lhes
sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que o querem parecer, todos
esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas
de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra; e lá vai
a vida. Isto não é encarecimento.
Todos a trabalhar
toda a vida, ou na roça ou na cana, ou no engenho ou no tabacal,
e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches,
nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os
lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem
as jóias. Pois, em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo
com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.
27.
Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens, com que
vos escusais? Claro está que sim. Nem vós o podeis negar.
Pois, se é grande loucura esperdiçar a vida, por dois retalhos
de pano, quem tem obrigação de se vestir: vós, a quem
Deus vestiu, do pé até a cabeça, ou de peles de tão
vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e douradas, vestidos
que nunca se rompem nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar
com as modas, não é maior ignorância e maior cegueira
deixar-vos enganar, ou deixar-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas
de pano?!
Vede o vosso Santo
Antônio, que pouco o pôde enganar o mundo, com essas vaidades.
Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se
preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cônego regrante;
e, depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa
aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela
corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não
enganaram e foram sisudos.
V
28. Descendo
ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós.
E começando aqui pela nossa costa, no mesmo dia em que cheguei a
ela, ouvindo os roncadores, e vendo o seu tamanho, tanto me moveram a riso
como a ira. É possível que, sendo vós uns peixinhos
tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar? Se com uma linha de
coser e um alfinete torcido vos pode pescar um aleijado, por que haveis
de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais.
Dizei-me, o espadarte por que
não ronca? Porque ordinariamente quem tem muita espada, tem pouca
língua. Isto não é regra geral, mas é regra
geral que Deus não quer roncadores, e que tem particular cuidado
de abater e humilhar aos que muito roncam.
S. Pedro, a quem muito bem conheceram
vossos antepassados, tinha tão boa espada que ele, só, avançou
contra um exército inteiro de soldados romanos. E se Cristo lha não
mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas
que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado
e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser
constante até morrer, se fosse necessário; e foi tanto pelo
contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a
voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já
tinha fraqueado, na mesma hora em que prometeu tanto de si.
Disse-lhe Cristo, no Horto, que
vigiasse; e, vindo daí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo
com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão
também do que tinha brasonado:
Sic
non potuisti una hora vigilare mecum ?(Mc. 14, 37)
[Pedro
não pudeste vigiar nem ao menos uma hora comigo?]
Vós,
Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim, e não
pudestes uma hora vigiar comigo? Pouco há, tanto roncar, agora tanto
dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião é
sinal de dormir nela.
Pois que vos parece,
irmãos roncadores? Se isto sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer
ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes
de brasonar, nem roncar.
29. Se
as baleias roncaram, tinha mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza.
Mas ainda, nas mesmas baleias, não seria essa arrogância segura.
O que é a
baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens. Se o Rio Jordão
e o Mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano,
como devem ter, pois dele manam todos, bem deveis de saber que este gigante
era a ronca dos filisteus. Quarenta dias contínuos esteve armado
no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se atrevesse.
E no cabo, que fim teve aquela arrogância? Bastou um pastorzinho com
um cajado e uma funda, para dar com ele em terra.
Os arrogantes e soberbos
tomam-se com Deus, e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo. Assim que,
amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a S. Antônio.
Duas coisas há nos homens que os costumam fazer roncadores, porque
ambas incham: o saber e o poder. Caifás roncava de saber:
Vos
nescitis quidquam. (Jo.11,49)
[Vocês não sabem nada]
Pilatos roncava
de poder:
Nescis
quia potestatem habeo?(Jo. 19,10)
[Não sabes que tenho autoridade...?]
E ambos contra Cristo.
Mas o fiel servo de Cristo, Antônio,
tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós
mesmos experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar
em saber ou poder, quanto mais brasonar disso. E porque tanto calou, por
isso deu tamanho brado.
30. Nesta viagem de que fiz menção,
e em todas as que passei a Linha equinocial, vi debaixo dela o que muitas
vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido
esta ronha, e pegado também aos peixes.
Pegadores se chamam estes de que agora
falo, e com grande propriedade, porque, sendo pequenos, não só
se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados,
que jamais os desaferram.
De alguns animais de menos força
e indústria se conta que vão seguindo de longe aos leões
na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja.
O mesmo fazem estes pegadores, tão
seguros ao perto como aqueles ao longe, porque o peixe grande não
pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às
costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome.
Este modo de vida, mais astuto
que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida
que o aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos portugueses o navegaram,
porque não parte vice-rei ou governador para as conquistas, que não
vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá
lhes matem a fome de que lá não tinham remédio.
Os menos ignorantes, desenganados da
experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que
se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes
a suceder no fim o que aos pegadores do mar.
31. Rodeia a nau o tubarão nas
calmarias da linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos
com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes
ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração
de quatro soldados, arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo
de um bocado, e fica preso. Corre meia campanha a alá-lo acima. Bate
fortemente o convés com os últimos arrancos. Enfim morre o
tubarão, e morrem com ele os pegadores.
Parece-me que estou ouvindo
a S. Mateus, sem ser apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na
terra. Morto Herodes, diz o evangelista, apareceu o anjo a José no
Egito, e disse-lhe que já se podia tornar para a pátria, porque
eram mortos todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino:
Defuncti
sunt enim qui quaerebant animam Pueri (Mt. 2, 20).
[Estão
mortos os que queriam tirar a vida do menino]
Os que queriam tirar
a vida a Cristo menino, eram Herodes e todos os seus, toda a sua família,
todos os seus aderentes, todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna.
Pois, é possível que todos estes morressem juntamente com
Herodes? Sim, porque, em morrendo o tubarão, morrem também
com ele os pegadores:
Defunto
Herode, defuncti sunt qui quaerebant animam Pueri.
[Morto
Herodes, mortos estão todos os que queriam tirar a vida do Menino]
Eis aqui, peixinhos
ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este
modo de vida que escolhestes. Tomai exemplo nos homens, pois eles o não
tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo Antônio.
32. Deus também tem os seus pegadores.
Um destes era Davi que dizia:
Mihi
autem adhaerere Deo bonum est.(Sl. 73,28)
[Para
mim é bom unir-me a Deus]
Peguem-se outros aos
grandes da terra, que eu só me quero pegar a Deus. Assim o fez também
Santo Antônio, e se não, olhai para o mesmo santo, e vede como
está pegado com Cristo, e Cristo com ele. Verdadeira-mente se pode
duvidar qual dos dois é ali o pegador, e parece que é Cristo,
porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se
tão pequenino para se pegar a Antônio.
Mas Antônio
também se fez menor, para se pegar mais a Deus. Daqui se segue que
todos os que se pegam a Deus, que é imortal, seguros estão
de morrer como os outros pegadores, e tão seguros que, ainda no caso
em que Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não
morressem todos os que se pegassem a ele.
Bem se viu nos
que estavam já pegados, quando disse:
Si
ergo me quaeritis, sinite hos abire (Jo. 18, 8)
Se
me buscais a mim, deixai ir a estes.
E posto que
deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos,
não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra,
que, quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não
se pegam de tal sorte que morram juntamente com eles.
Lá diz a Escritura
daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor,
que todas as aves do céu descansavam sobre seus ramos, e todos os
animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns e outros se sustentavam
de seus frutos. Mas também diz que, tanto que foi cortada esta árvore,
as aves voaram e os outros animais fugiram.
Chegai-vos embora aos grandes,
mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais
com eles.
33. Considerai, pegadores vivos, como
morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e por quê.
O tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não
comeram. Pode haver maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia?
Que morra o tubarão porque comeu: matou-o a sua gula; mas que morra
o pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que
se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado
original!
Nós, os homens,
somos tão desgraçados, que outrem comeu, e nós o pagamos.
Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva,
e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça!
Mas nós lavamo-nos
desta desgraça com uma pouca de água, e vós não
vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem o
mar.
34. Com os voadores tenho também
uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores,
não vos fez Deus para peixes? Pois, por que vos meteis a ser aves?
O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas.
Contentai-vos com
o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso
vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas, e para vossas escamas,
e conhecereis que não sois ave, senão peixe, e ainda, entre
os peixes, não dos melhores.
Dir-me-eis, voador, que
vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros do vosso tamanho. Pois porque
tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?
Mas ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes
ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino que todos.
Aos outros peixes,
do alto mata-os o anzol ou a fisga; a vós, sem fisga nem anzol, mata-vos
a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando
e o marinheiro dormindo, e o voador toca na vela, ou na corda, e cai palpitando.
Aos outros peixes mata-os a fome, e engana-os a isca; ao voador mata-o a
vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar
por baixo da quilha, e viver, que voar por cima das antenas, e cair morto.
Grande ambição é que, sendo o mar tão imenso,
lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira
outro elemento mais largo. Mas vede, peixes, o castigo da ambição.
O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus
que tenha os perigos de ave e mais os de peixe.
Todas
as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas laços,
como ave. Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo. Pouco
há, nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés,
amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave,
e já não és ave nem peixe; nem voar poderás
já, nem nadar. A natureza deu-te água: tu não quiseste
senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo.
Peixes, contente-se
cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo
ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do
fogo quando nadava na água; mas porque quis ser borboleta das ondas,
vieram-lhe a queimar as asas.
35. À vista deste exemplo,
peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais
do que lhe convém perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar,
e quer voar, tempo virá em que não voe, nem nade.
Ouvi o caso de um
voador da terra. Simão Mago, a quem a arte mágica, na qual
era famosíssimo, deu o sobrenome; fingindo-se que ele era o verdadeiro
Filho de Deus, sinalou o dia em que nos olhos de toda Roma havia de subir
ao céu, e com efeito começou a voar muito alto; porém
a oração de S. Pedro, que se achava presente, voou mais depressa
que ele, e, caindo lá de cima o mago, não quis Deus que morresse
logo, senão que nos olhos também de todos quebrasse, como
quebrou, os pés.
Não quero
que repareis no castigo, senão no gênero dele. Que caia Simão,
está muito bem caído; que morra, também estaria muito
bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia.
Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça
ou os braços, senão os pés? Sim, diz São Máximo,
porque quem tem pés para andar e quer asas para voar, justo é
que perca as asas, e mais os pés.
Elegantemente
o Santo Padre:
Ut
qui Paulo ante volare tentaverat, subito ambulare non posset:
et
qui pennas assumpserat, plantas amitteret.
[O
que antes tentava voar, subitamente não pode andar:
E
o oque assumiu penas perdeu as pernas]
E Simão
tem pés, e quer asas, pode andar, e quer voar? Pois quebrem-se-lhe
as asas, para que não voe, e também os pés, para que
não ande.
Eis aqui,
voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente
com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro
se afogou no Danúbio, não haveria tantos Ícaros no
Oceano.
36. Oh, alma de Antônio, que só vós
tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo e não
para cima. Já S. João viu no Apocalipse aquela mulher, cujo
ornato gastou todas as suas luzes ao firmamento, e diz que lhe foram dadas
duas grandes asas de águia:
Datae
sunt mulieri alae duae aquilae magnae.
[Foram
dadas à mulher duas asas grandes de águia]
E para quê?
Ut
volaret in desertum (Apc. 12,14):
Para
voar ao deserto.
Notável coisa,
que não debalde lhe chamou o mesmo profeta, grande maravilha: Esta
mulher estava no céu:
Signum
magnum apparuit in caelo, mulier amicta sole (Ap. 12,1)
[Apareceu
no céu um grande sinal: uma mulher vestida de sol]
Pois se a mulher
estava no céu, e o deserto na terra, como lhe dão asas para
voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As
asas para subir são muito perigosas; as asas para descer muito seguras,
e tais foram as de S. Antônio.
Deram-se à
alma de Santo Antônio duas asas de águia, que foi aquela duplicada
sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele,
que fez? Não estendeu as asas para subir: encolheu-as para descer,
e tão encolhidas, que, sendo Arca do Testamento, era reputado, como
já vos disse, por leigo e sem ciência.
Voadores do mar (não
falo com os da terra) imitai o vosso Santo Pregador.
Se vos parece
que as vossas barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais
para subir, por que vos não suceda encontrar com alguma vela, ou
algum costado. Encolhei-as para descer. Ide-vos meter no fundo em alguma
cova, e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros.
37. Mas já que estamos nas
covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo,
contra o qual tem suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio
e Santo Ambrósio.
O polvo, com aquele
seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos,
parece uma estrela; com aquele não ter osso, nem espinha, parece
a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência
tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham contestamente
os dois grandes doutores da Igreja Latina e Grega que o dito polvo é
o maior traidor do mar.
Consiste esta traição
do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas
aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão
são gala, no polvo são malícia. As figuras, que em
Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício.
Se está nos limos, faz-se verde, se está na areia, faz-se
branco, se está no lodo, faz-se pardo, e se está em alguma
pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra.
E daqui, que
sucede? Sucede que o outro peixe, inocente da traição, vai
passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro
do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente,
e fá-lo prisioneiro.
Fizera mais Judas? Não
fizera mais, porque nem fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros
o prenderam. O polvo é o que abraça, e mais o que prende.
Judas com os braços fez-se o sinal, e o polvo dos próprios
braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas
com lanternas diante.Traçou a traição às escuras,
mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira
a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz é
à luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso
e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação
já é menos traidor.
38. Oh! que excesso
tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro,
tão claro, e tão cristalino como o da água, espelho
natural não só da terra, senão do mesmo céu!
Lá disse o profeta por encarecimento que,
nas nuvens do ar, até a água é escura:
Tenebrosa
aqua in nubibus aeris (SI.17)
E disse nomeadamente
nas nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro elemento, e não
à água, a qual em seu próprio elemento sempre é
clara, diáfana e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir,
nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite
com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado,
tão fingido, tão astuto, tão enganoso, e tão
conhecidamente traidor?
Vejo, peixes, que, pelo
conhecimento que tendes das terras em que batem os vossos mares, me estais
respondendo e convindo que também nelas há falsidades, enganos,
fingimentos, embustes, ciladas, e muito maiores e mais perniciosas traições.
E sobre o mesmo sujeito que defendeis,
também podereis aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria;
mas, pois vós a calais, eu também a calo.
Com grande confusão, porém,
vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois o não posso negar.
Mas ponde os olhos
em Antônio, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da
candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento
ou engano.
E sabei também, que para
haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português;
não era necessário ser santo.
39. Tenho acabado, irmãos peixes, os
vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às
duas obrigações de sal, posto que do mar, e não da
terra:
Vos
estis sal terrae -[Vós sois o sal
da terra]
Só resta fazer-vos
uma advertência muito necessária, para os que viveis nestes
mares.
Como eles são tão
esparcelados e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão
à costa muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece.
Importa, pois, que advirtais
que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que se
aproveitam dos bens dos naufragantes ficam excomungados e malditos.
Esta pena de excomunhão, que
é gravíssima, não se pôs a vós, senão
aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas vezes que quando os animais
cometem materialmente o que é proibido por esta lei, também
eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto começam
a definhar, até que acabam miseravelmente.
Mandou Cristo a S. Pedro
que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse acharia uma
moeda com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que
este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos outros
podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só
moeda de prata, e de pouco peso.
Com que mistério manda
logo o Senhor que se tire da boca deste peixe, e que seja ele o que morra
primeiro que os demais? Ora, estai atentos. Os peixes não batem moeda
no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa
vir dinheiro. Logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum
navio que fizera naufrágio naqueles mares.
E quis mostrar o Senhor que as penas
que S. Pedro, ou seus sucessores, fulminam contra os homens que tomam os
bens dos naufragantes, também os peixes, por seu modo, as incorrem,
morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram atravessa-do
na garganta.
Oh! que boa doutrina era
esta, para a terra se eu não pregara para o mar! Para os homens não
há mais miserável morte que morrer com o alheio atravessado
na garganta, porque é pecado de que o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo
Pontífice não pode absolver.
E posto que os homens incorrem a morte
eterna, de que não são capazes os peixes, eles, contudo, apressam
a sua temporal, como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se não
abstêm dos bens dos naufragantes.
VI
41. Com esta última
advertência vos despeço, ou me despeço de vós,
meus peixes.
E para que vades
consolados do sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos
aliviar de uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes
desde o tempo em que se publicou o Levítico.
Na lei
eclesiástica, ou ritual do Levítico, escolheu Deus certos
animais que lhe haviam de ser sacrificados, mas todos eles, ou animais terrestres
ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos sacrifícios.
E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de
grande desconsolação e sentimento para todos os habitadores
de um elemento tão nobre, que mereceu dar a matéria ao primeiro
sacramento?
O motivo principal de serem
excluídos os peixes foi porque os outros animais podiam ir vivos
ao sacrifício, e os peixes geralmente não, senão mortos,
e coisa morta não quer Deus que se lhe ofereça nem chegue
aos seus altares.
Também este ponto
era mui importante e necessário aos homens, se eu lhes pregara a
eles. Oh! quantas
almas chegam àquele altar mortas, porque chegam, e não têm
horror de chegar, estando em pecado mortal!
Peixes, dai
muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é
não chegar ao sacrifício, que chegar morto.
Os outros animais ofereçam,
a Deus, o ser sacrificados: vós oferecei-lhe o não chegar
ao sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o sangue e a vida: vós
sacrificai-lhe o respeito e a reverência.
42. Ah! peixes, quantas invejas
vos tenho a essa natural irregularidade!
Quanto melhor me
for a não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo tão
indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas
vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão, e o
vosso instinto melhor que o meu alvedrio.
Eu falo, mas vós
não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós
não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós
não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós
não ofendeis a Deus com a vontade.
Vós fostes
criados por Deus para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes
criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim
para que me criou.
Vós não
haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente,
porque o não atendestes: eu espero que o hei de ver, mas com que
rosto hei de aparecer diante de seu divino acatamento, se não cesso
de o ofender?
Ah! que
quase estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um
homem que tinha as minhas mesmas obrigações, disse a Suma
Verdade que melhor lhe fora não nascer,
ou não nascer homem:
Si
natus non fuisset homo
E pois
os que nascemos homens respondemos tão mal às obrigações
de nosso nascimento, contentai-vos, peixes, e dai muitas graças a
Deus pelo vosso.
43. Benedicite cetes, et omnia, quae
moventer in aquis Domino:
[Bendizei
ao Senhor, grandes animais marinhos e tudo que se move nas águas]
Louvai, peixes, a Deus,
os grandes e os pequenos.
E repartidos em dois
coros tão inumeráveis, louvai-o todos uniformemente.
Louvai a Deus, porque
vos criou em tanto número.
Louvai a Deus, que vos
distinguiu em tantas espécies;
louvai a Deus, que vos
vestiu de tanta variedade e formosura;
louvai a Deus, que vos
habilitou de todos os instrumentos necessários para a vida;
louvai a Deus, que vos
deu um elemento tão largo e tão puro;
louvai a Deus, que vindo
a este mundo, viveu entre vós,
e chamou para si aqueles
que convosco e de vós viviam;
louvai a Deus, que vos
sustenta; louvai a Deus que vos conserva;
louvai a Deus que vos
multiplica;
louvai a Deus, enfim,
servindo e sustentando ao homem,
que é o fim para
que vos criou,
e assim como no princípio
vos deu sua bênção,
vo-la dê também
agora. Amém.
Como não sois capazes
de glória, nem graça, não acaba o vosso sermão
em graça e glória